sábado, 5 de maio de 2018

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «Apesar do seu propósito procriador, o casamento romano existe juridicamente mesmo que não seja consumado. A realização do acto sexual não é necessária à sua existência…»

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A finalidade da procriação
«(…) O matrimonium romano é uma instituição que implica uma mãe (mater). Devemos a Benveniste o ter mostrado a singularidade do nome latino do casamento (matrimonium), que significa condição legal de mater: O casamento é o estado de mãe ao qual se destina a rapariga. A ideia que está implícita na palavra é a de que um homem se casa com uma mulher, in matrimonium ducere, para dela obter filhos, segundo a formulação legal. Ele pode ser dissolvido quer pela morte de um dos esposos, quer por separação (repudiação, divórcio). Uma das causas mais frequentes de repudiação de uma esposa pelo marido, a partir do século III a.C., é a sua esterilidade ou uma insuficiente fertilidade.
A mulher é, portanto, considerada pelos homens na sua capacidade para ser mãe. A antropóloga Françoise Héritier estima que todos somos submetidos a um mesmo modelo de representação que vem da nossa pré-história e ao qual chamo modelo arcaico dominante. Os homens têm necessidade de se apropriarem das mulheres para terem descendência e, sobretudo, uma descendência semelhante a eles, isto é, filhos homens. Portanto, elas foram tidas como um recurso. Neste ponto, nada distingue Roma das outras sociedades antigas, nem, de forma mais geral, da quase totalidade das sociedades humanas antes da emancipação das mulheres no mundo industrial contemporâneo. O que mais merece atenção, para além de todas as generalidades sociológicas que podem ser inspiradas pelo tema da mulher-mãe, é um facto de ordem institucional que, ele sim,. é original: o acontecimento que faz uma mulher aceder ao estatuto reconhecido pela sociedade de materfamilias já não é o parto, mas sim o casamento. Yan Thomas sublinha igualmente que o direito, forjando, para designar a esposa legítima, o nome materfamilias, constrói a maternidade da mulher como um estatuto que se realiza no único facto de estar unida a um paterfamilias: o código das dignidades institucionais desnaturaliza a maternidade para a absorver, ideal e ficticiamente, no estado de esposa de um cidadão maior. É a razão pela qual se diz mãe de família até mesmo de uma esposa que ainda não teve filhos.
Os romanos consideram convencionalmente o casamento como uma instituição necessária para o nascimento de filhos legítimos. Uma mulher é dada a um homem com o único intuito de procriar, de continuar a linhagem do esposo com descendentes legítimos. É este objectivo que define a mulher como uma esposa legal e a união como um casamento. No enunciado deste objectivo, é o ponto de vista masculino que predomina, claro e pragmático. A cidade e a sua sobrevivência precisam que os cidadãos se casem e produzam novos cidadãos. A satisfação do instinto sexual não é, portanto, a razão de ser do casamento, porque os homens podem licitamente satisfazer os seus desejos físicos sem recorrer ao casamento. A sexualidade conjugal tem como única finalidade a procriação. No século primeiro da nossa era, uma mulher a que se costuma chamar Túria, mas cujo nome é na verdade desconhecido, ilustra bastante bem a importância deste modelo tradicional do casamento nas mentalidades romanas.
No elogio fúnebre que lhe dirige o esposo, este recorda que ela lhe propôs o divórcio dado o casal ser estéril, mas que a isso ele opôs uma recusa veemente, em nome da fidelidade conjugal que os ligava indefectivelmente. Se um casal falha na tarefa de produzir filhos, a esterilidade é, em geral, imputada à esposa, e o marido pode unilateralmente divorciar-se. Quando Apuleio se casa com a rica viúva Pudentila em Oea, em meados do século segundo da nossa era, a finalidade do casamento ainda não mudou. O casal comporta-se plenamente de acordo com as normas romanas tradicionais, casando-se não ad lubidinem, não por sensualidade, mas com o intuito de ter filhos. Procurando justificar o facto de se ter casado com Pudentila no campo, ele lembra o valor simbólico de um casamento realizado no campo, num solo fértil, enquanto a cidade representa um lugar estéril.

Que aquela que deve ser mãe (mater futura) se case no próprio regaço maternal, por entre o trigo maduro, na gleba fértil [...].

A sexualidade conjugal está, assim, indissociavelmente ligada à procriação. Todavia, se não pode rimar com paixão, mas com razão e dever, ela pode ocupar um lugar importante em Roma. Com efeito, a actividade sexual no interior do casamento é natural, necessária e casta; possui um carácter sagrado. As esposas respeitáveis devem aceitá-la. Os maridos devem cumpri-la para perpetuar a raça, mesmo que lhe ofereça poucos atractivos.
Apesar do seu propósito procriador, o casamento romano existe juridicamente mesmo que não seja consumado. A realização do acto sexual não é necessária à sua existência, como Ulpiano e muitos outros juristas confirmam: não é o facto de se dormir em conjunto que faz o casamento, mas sim o consentimento. Uma outra razão, de ordem médica, pode justificar a necessidade de casamento. Por vezes, as relações sexuais permitem a recuperação da saúde. Pudentila, mulher de Apuleio, é disso um exemplo típico. No seguimento de um período de viuvez de catorze anos, Pudentila tornou-se, nas palavras de Apuleio, letárgica, devido a uma falta demasiado longa de relações sexuais, às quais ela estava bastante acostumada aquando do seu primeiro casamento. Pudentila sofre visivelmente de histeria, ainda que Apuleio não nomeie a doença exacta da esposa. O seu casamento com Apuleio é, portanto, um antídoto para os seus problemas de saúde femininos. Os médicos antigos pensam, de facto, que a abstinência sexual involuntária de uma mulher, se for prolongada, pode acarretar complicações físicas e, em casos extremos, uma sufocação histérica, à qual os latinos chamam doença da vulva (uuluae morbus),para não esquecer a epilepsias». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT