Cortesia
de wikipedia e jdact
«Escritores
da primeira metade do século XX percorreram os caminhos que nos levaram do México
à China. Por muito tempo Jean Giraudoux nos sugeriu um título, A guerra da China
não acontecerá, que foi preciso abandonar. Paul Claudel soube ressuscitar
mundos que, hoje, talvez sejamos mais capazes de compreender. Nas jornadas de O
sapato de cetim (1929) dialogam seres vindos dos quatro cantos do globo. O
palco deste drama é o mundo, e mais especialmente a Espanha no final do século XVI.
Ao comprimir os países e as épocas, Claudel não pretendia fazer um trabalho de
historiador, mas nos mergulhava nos remoinhos de uma globalização. Uma
globalização que não era nem a primeira nem a última, mas que se instalou
rapidamente durante o século XVI, na esteira das expedições portuguesas e
espanholas. A águia asteca e o dragão chinês sofreram, então, os primeiros efeitos
da desmesura europeia.
Essa globalização é um fenómeno
diferente da expansão europeia, que mobilizou muitos recursos técnicos,
financeiros, espirituais e humanos. Ela respondeu a opções políticas, cálculos
económicos e aspirações religiosas que se conjugaram, com menor ou maior eficácia,
para atrair marinheiros, soldados, padres e comerciantes a milhares de quilómetros
de distância da Península Ibérica, num deslocamento em todas as direcções do
mundo. A expansão ibérica provocou reacções em cadeia e, com frequência,
choques que desestabilizaram sociedades inteiras. Foi o que aconteceu na América.
A Ásia enfrentou algo mais forte do que ela, quando não atolou nos pântanos e
nas florestas da África. A imagem de uma progressão inelutável dos europeus,
quer exaltemos as suas virtudes heroicas e civilizadoras, quer a condenemos às
gemónias, é uma ilusão da qual é bem difícil se desfazer.
Resulta de uma visão linear e
teleológica da história que continua a aderir à pena do historiador e ao olho
do leitor. O que é equivocado quanto à expansão ibérica é ainda mais errado
quanto à globalização, que podemos definir como a proliferação de todos os
tipos de vínculo entre partes do mundo que até então se ignoravam ou se
relacionavam com enorme distanciamento. A que se desenrola no século XVI abrange
ao mesmo tempo a Europa, a África, a Ásia e o Novo Mundo, entre os quais com
frequência se desencadeiam interacções de intensidade sem precedentes. Um
tecido ainda frágil, cheio de buracos imensos, sempre prestes a rasgar ao menor
naufrágio, mas indiferente às fronteiras políticas e culturais, começa a se
estender por todo o planeta. Quais são os protagonistas dessa globalização? Por
bem ou por mal, populações africanas, asiáticas e ameríndias participam dela,
mas os portugueses, os espanhóis e os italianos fornecem o essencial da energia
religiosa, comercial e imperialista, ao menos nessa época e por um bom século e
meio. O servo chinês de O sapato de cetim diz a Don Rodrigue, vice-rei
das Índias: nós nos tomamos um pelo outro e não há mais como nos desenvencilhar.
O que os contemporâneos percebem
de tudo isso? Com frequência o olhar deles é mais penetrante do que o dos
historiadores que se sucederam para observá-los. Homens do século XVI, e não
somente europeus, compreendem a amplitude do movimento ao qual são confrontados,
e na maioria das vezes o fazem em termos religiosos, a partir das perspectivas que
a missão lhes abre. Mas a globalização se desenha também no espírito dos que são
sensíveis à aceleração das comunicações entre as diferentes partes do mundo, à
descoberta da infinita diversidade das paisagens e dos povos, às extraordinárias
oportunidades de lucro trazidas por investimentos projectados no outro lado do
globo, ao crescimento ilimitado dos espaços conhecidos e dos riscos
enfrentados. Nada parece resistir à curiosidade dos viajantes, ainda que muitas
vezes estes não fossem a lugar algum sem o auxílio de seus guias e dos seus pilotos
nativos.
Pode-se atribuir o descobrimento
da América ou a conquista do México a figuras históricas como Hernán Cortés ou
Cristóvão Colombo. O assunto é discutível, mas o procedimento é cómodo. A distância
dos séculos e a nossa ignorância cada vez maior militam para que aceitemos essas
simplificações. Já a globalização não tem autor. Ela responde em escala planetária
aos embates provocados pelas iniciativas ibéricas. Mistura histórias múltiplas cujas
trajectórias de repente se entrechocam, precipitando desenlaces imprevistos e
até então inconcebíveis. A globalização não tem nada de uma maquinaria inexorável
e irreversível que executaria um plano preconcebido com vistas à uniformização
do globo. Portanto, seria equivocado acreditar que nossa globalização nasceu
com a queda do muro de Berlim. Seria igualmente ilusório imaginar que ela é a
gigantesca árvore nascida de uma semente plantada no século XVI por mãos ibéricas.
Parece, contudo, que o nosso tempo é devedor dessa época longínqua, por várias
razões, se aceitarmos que a ausência de filiação directa ou de linearidade não
transforma o curso da história numa cascata de acasos e de acontecimentos sem
consequências. É no século XVI que a história humana se inscreve num cenário
que se identifica com o globo. É então que as conexões entre as partes do mundo
se aceleram: Europa/Caribe a partir de 1492, Lisboa/Cantão a partir de 1513,
Sevilha/México a partir de 1517 etc. Acrescentemos outra razão que está no
cerne deste livro: é com a globalização ibérica que a Europa, o Novo Mundo e a
China se tornam parceiros planetários.
A China e a América têm um papel
importantíssimo na globalização actual. Mas por que a China e a América se
encontram face a face no xadrez terrestre, de onde vem isso? E porque a América
dá hoje sinais de esgotamento, enquanto a China parece ter tomado impulso para lhe
arrebatar o primeiro lugar?» In Serge Gruzinski, A Águia e o Dragão,
Edições 70, 2015, ISBN 978-972-441-844-5.
Cortesia de E70/JDACT