Cortesia
de wikipedia e jdact
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Hawkins havia deixado um olho em Valparaíso e metade de uma perna em Nombre de Dios,
e cantava, toda a noite, lamentosos fados portugueses em honra a uma donzela
num balcão no bairro da Ribeira no Porto, acompanhando-se ao som de uma espécie
de violino cigano. Benza-Deus chorava copiosamente ao cantar e Uccello entendeu
que o bom médico estava imaginando a si próprio cor…, invocando, para se
torturar, imagens da sua amada bebedora de vinho do porto na cama com homens
que ainda eram inteiros, pescadores fedendo às barbatanas das suas presas, lúbricos
monges franciscanos, fantasmas dos primeiros navegadores e homens vivos de toda
variedade e cor, gringos e ingleses, chineses e judeus. Um homem vítima de um
encantamento de amor, pensou o clandestino, é um homem fácil de distrair e
conduzir. Enquanto o Scáthach singrava pelo Chifre da África, pela ilha de
Socotra, enquanto carregava suprimentos em Maskat e depois deixava a costa
persa a bombordo e, soprado pelo vento da monção, seguia em direcção sul para o
porto português de Diu na costa sul do lugar que o dr. Hawkins chamou de
Guzerat, lorde Hauksbank desse Nome continuava a dormir pacificamente, um sono
tão calmo, benza Deus, segundo o desamparado Hawkins, que prova que a consciência
dele está limpa assim como a sua alma ao menos está em boa saúde, pronta para
encontrar o seu Criador a qualquer momento. Deus nos livre, disse o
clandestino. Benza Deus, que ele não seja levado ainda, o outro concordou prontamente.
Durante sua longa vigília ao lado da cama, Uccello muitas vezes perguntou ao
doutor sobre a sua amada portuguesa. Hawkins precisava de pouco estímulo para
discutir o assunto. O clandestino ouvia pacientemente a adoradora louvação dos
olhos da dama, dos seus lábios, dos seus seios, quadris, barriga, ancas, pés.
Ele aprendeu os termos carinhosos que ela usava no acto amoroso, termos não
mais secretos agora, e ouviu as suas promessas de fidelidade e o sussurrado
juramento de eterna união. Ah, mas ela é falsa, falsa, o médico chorou. Sabe
disso com certeza?, o viajante perguntou, e então o lacrimoso Benza-Deus sacudiu
a cabeça e disse: faz tanto tempo e agora eu não sou mais que meio homem, portanto
tenho de concluir o pior, então Uccello o conduziu de novo à alegria. Bom, vamos
agora dar graças a Deus, Benza-Deus, porque você está chorando sem razão! Ela é
sincera, tenho a certeza; e está à sua espera. Eu não duvido; e se você tem uma
perna de menos, bom, então ela vai ter amor sobrando, o amor que era para essa
perna pode ir para outras partes; e se você não tem um olho, o outro vai regalar-se
duas vezes mais com ela que se conservou fiel, e ama você tanto quanto você a
ama! Basta! Louvado seja Deus! Cante alegre e não chore mais.
Dessa maneira, ele dispensava
Benza-Deus Hawkins todas as noites, garantindo que a tripulação ficaria
desolada se não ouvisse o seu canto, e todas as noites, quando estava sozinho
com o milorde inconsciente, depois de esperar alguns momentos, fazia uma busca completa
nas acomodações do capitão, procurando todos os seus segredos. Um homem que
constrói uma cabine com uma cavidade secreta construiu uma cabine com duas ou
três pelo menos, raciocinou e, quando avistaram o porto de Diu, ele havia
depenado lorde Hauksbank como uma galinha, tinha descoberto sete câmaras
secretas nos painéis das paredes e todas as jóias das caixas de madeira
encontradas ali estavam em segurança nas suas novas moradas no casaco de
Shalakh Cormorano, porque o Mouro de Veneza de olhos verdes conhecia o segredo
de deixar sem peso quaisquer bens segredados dentro daquela roupa mágica.
Quanto aos outros objectos de virtude, eles não interessavam ao ladrão. Deixou-os
aninhados onde estavam, para chocar os pássaros que pudessem». In Salman
Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN
978-972-203-692-4.
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