Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Cumprimentei com
a mão, mas ela já tinha evaporado. Esperei em vão que Marina voltasse a aparecer.
O sol roçava a cúpula do céu e calculei que os ponteiros deviam rondar as doze
badaladas do meio-dia. Quando me convenci de que Marina não ia aparecer, voltei
para o internato. Os velhos portões do bairro pareciam sorrir, cúmplices. Eu ouvia
o eco de meus passos, mas poderia jurar que estava andando a um palmo do chão.
Acho que nunca
fui tão pontual naem minha vida. A cidade ainda estava de pijama quando cruzei
a Plaza Sarriá. A minha passagem, um bando de pombos levantou voo ao toque dos
sinos da missa das nove. Um rol de folheto publicitário iluminava as poças
deixadas pela chuvinha nocturna. Kafka tinha-se adiantado para me receber no
início da rua que levava ao casarão. Um grupo de pardais mantinha-se a uma distância
prudente, no alto de um muro. O gato os observava com uma estudada indiferença profissional.
Bom dia, Kafka. E então, já cometemos algum assassinato esta manhã? O gato
respondeu com um mero rom-rom e, como se fosse um imperturbável mordomo inglês,
tratou de me guiar através do jardim até à fonte. Reconheci a silhueta de
Marina sentada na beirada, com um vestido cor de marfim que deixava os ombros descobertos.
Segurava um livro com encadernação de couro, no qual escrevia com uma esferográfica.
O seu rosto delatava uma grande concentração, ela não percebeu a minha
presença. Sua mente parecia estar noutro mundo, o que permitiu que a contemplasse,
abobalhado, por alguns instantes. Concluí que aquelas clavículas só podiam ter sido
desenhadas por Leonardo da Vinci: não havia outra explicação. Ciumento, Kafka rompeu
a magia com um miado. A esferográfica parou de repente e os olhos de Marina se
ergueram até aos meus. Em seguida, ela fechou o livro.
Preparado?
Marina me guiou pelas ruas de Sarriá,
sem um destino conhecido e sem qualquer indício das suas intenções além de um
sorriso misterioso. Para onde estamos indo?, perguntei depois de vários minutos.
Paciência. Já vai ver. Continuei a segui-la docilmente, embora abrigasse a
suspeita de estar sendo vítima de alguma brincadeira que, pelo menos por enquanto,
não conseguia compreender. Descemos até ao Paseo de la Bonanova e, de lá, virámos
em direcção a San Gervasio. Passamos diante do buraco negro do bar Víctor. Entrincheirados
atrás dos óculos escuros, um bando de mauricinhos empunhava as suas cervejas,
indolentemente sentados no selim das suas vespas. Quando passámos, vários deles
puxaram os ray-ban até a ponta do nariz para fazer uma radiografia de Marina. Tomara
que explodam!, pensei.
Assim que chegamos à rua Dr. Roux,
Marina dobrou à direita. Descemos várias quadras até uma pequena viela sem
asfalto, que começava na altura do número 112. O enigmático sorriso continuava
a dançar nos lábios de Marina. É aqui?, perguntei intrigado. A ruazinha não
parecia levar a parte alguma. Marina se limitou a seguir em frente. Levou-me
por um caminho que subia até um portal ladeado por ciprestes. Mais adiante, um
jardim encantado povoado de lápides, cruzes e mausoléus cobertos de mofo
empalidecia sob as sombras azuladas. O velho cemitério de Sarriá.
O cemitério de Sarriá é um dos lugares
mais escondidos de Barcelona. Quem procurar no mapa, não vai achar nada. Se perguntar
a vizinhos ou taxistas, é mais provável que não saibam dizer, embora todos já
tenham ouvido falar dele. E se alguém, por acaso, se atrever a procurar por
conta própria, é mais provável que se perca. Os poucos que conhecem o segredo
da sua localização suspeitam que, na verdade, o velho cemitério não seja mais
do que uma ilha do passado que aparece e desaparece a seu bel-prazer. Esse foi
o cenário que Marina escolheu para me levar naquele domingo de Setembro para revelar
um mistério que me intrigava tanto quanto a ela». In Carlos Ruiz Zafón, Marina,
1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
Cortesia de PlanetaE/JDACT