sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «É el-rei que chega, gritam de baixo. Recebem-nos na alcáçova e, pouco depois, o mestre da capitânia da armada, ancorada na foz do Larache…»

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O galeão S. Mateus
«(…) Só mostrei a carta aos meus mais íntimos conselheiros quando já na marcha, por temer que me embaraçassem de passar avante, mas eles tiveram-na por astúcia do bárbaro. No dia sete tínhamos navegado para Tânger, de onde partíamos a doze para Arzila. A vinte e sete metíamo-nos terras adentro por aquele deserto e, quase sem água, alcançávamos a ponte de Alcácer. A batalha feriu-se a quatro de Agosto... Que desgraça tamanha!, disse o arcebispo, compungido. Meu Deus! Aquele fatídico fim de tarde! Trago ainda nos olhos e nos ouvidos, na alma e na carne aquele apocalipse... E, de olhar perdido, o peregrino contava da bravura dos golpes, das arrancadas dos cavaleiros, do relampejo de espadas, alfanges e cimitarras, da saraivada dos pelouros que zuniam, das hordas de mouros que cercavam os cristãos, do estrondo da artilharia, da grita e alarido, dos urros de dor e de raiva, da carga dos arcabuzeiros, dos tiros das escopetas, do fumo e poeira no ar doirado pelo sol ardente, empapado de sangue o areal onde uivavam os feridos sobre montões de cadáveres e esperneavam cavalos e escoucinhavam nos sacões da morte... Olhando em redor, já não via junto de si o seu alferes com a bandeira. Apenas o seguia a destemida agilidade do moço pajem do guião. O cavalo em que ia montado escorria sangue e já não podia dar passo. Mas ali estava Jorge Albuquerque Coelho, senhor de Pernambuco, muito chagado de quatro cutiladas e atravessado de uma seta pelos peitos, aguentando-se bravamente em cima de um cavalo ruço-queimado muito formoso. Pede-lhe o cavalo.
Para este momento vo-lo guardei, meu senhor, responde o fidalgo, que logo, por se não poder menear das feridas nem se firmar nos estribos, chama soldados que o ajudem a desmontar. Salva-te, rei repetia, deitado no chão. Salvai-vos. É o que importa. Já não há outro remédio e quanto a vista lhe alcança vê o furacão do rei abalar dali, a espada apontada como lança em riste. Adiante estava caído, a sangrar, golpeado, o Prior do Crato: É o fim, senhor, é o fim. Por amor de Deus, fugide. Não quer fugir. Deseja morrer com honra. Mas súbito vê-se rodeado por Jorge Lencastre, duque de Aveiro, por Luís Coutinho, conde do Redondo, por João Silveira, filho do conde da Sortelha, por Cristóvão Távora, que lhe indicam na chusma dos mouros uma nesga por onde escapar. Seguidos do pajem Telo Meneses, deram em o levar para trás e foram saindo do campo de batalha...
Eu não queria fugir, contava, contristado, mas o duque de Aveiro..., pretendia talvez, observou o arcebispo, salvar a vida do seu rei..., salvar-me a vida, bem sei. Não era desonra, dizia ele, perder uma batalha, mas sim, perdendo-me, perder o reino... Caía a noite. Os fugitivos chegam às portas de Arzila. Batem. O capitão Pero Mesquita não quer abrir. É el-rei que chega, gritam de baixo. Recebem-nos na alcáçova e, pouco depois, o mestre da capitânia da armada, ancorada na foz do Larache, recolhe os fugitivos no galeão São Mateus e a toda a vela rumam para o reino...

Estrella
E depois?, perguntava o arcebispo. Depois fora a vergonha, uma vergonha profunda e miserável. O seu sangue, o sangue de seus avós, revoltava-se, fervia turbulento. Pejo de si, viscoso e imundo. Escorrera-lhe pelo corpo e pela alma. Só lhe apetecia vomitar-se a si mesmo, tapar o rosto com as mãos como criança apanhada em falta, velar-se, não deixar que ninguém lhe fitasse o opróbrio..., sepultar-se em qualquer ignorado chavascal longínquo... Tinha-se despojado da armadura, das luvas, das vestes, de qualquer objecto ou sinal que o identificasse. Levaram-nos os companheiros para os lançarem ao mar. Enfiara o corpo numa roupa tirada a um vilão dos muitos que jaziam por terra nos montões de cadáveres. A bem dizer estava nu, um rei nu como agora diante de Sua Eminência. E essa nudez era o seu pudor... Os amigos procuravam levantar-lhe o ânimo, mas ele, enraivecido, perguntava-lhes: sabeis que coisa é a vergonha? Asco de morte pela desonra e deslustre...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT