quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Dei de ombros. Bem... Saí caminhando rua abaixo, sentindo que a magia daquela casa se desprendia de mim a cada passo que dava. De repente, a sua voz soou às minhas costas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A menina sorria maliciosamente. Os olhos de Germán pousaram nos meus, escuros e impenetráveis. Remexi no bolso e estendi o relógio para ele, esperando que a qualquer momento aquele homem começasse a berrar e ameaçasse chamar a polícia, a guarda civil ou o tribunal tutelar da infância e juventude. Acredito em você, disse ele delicadamente, aceitando o relógio e sentando-se à mesa connosco. A sua voz era suave, quase inaudível. Sua filha começou a arrumar um prato para ele com dois croissants e uma xícara de café com leite igual à minha. Enquanto fazia isso, beijou-o na testa e Germán abraçou-a. Fiquei olhando os dois na contraluz daquela claridade que penetrava pelas janelas. O rosto de Germán, que imaginei como um ogro, tornou-se delicado, quase doentio. Era alto e extremamente magro. Sorriu com amabilidade enquanto levava a xícara aos lábios e, por um instante, notei que entre pai e filha circulava uma corrente de afecto que ia muito além das palavras e dos gestos. Um vínculo de silêncio e olhares unia os dois nas sombras daquela casa, no final de uma rua esquecida, onde viviam afastados do mundo, um cuidando do outro.
Germán terminou a sua refeição e agradeceu gentilmente por eu ter-me dado ao trabalho de ir devolver o seu relógio. Tanta amabilidade fez com que me sentisse ainda mais culpado. Bem, Óscar, disse com voz cansada, foi um prazer conhecê-lo. Espero revê-lo por aqui outras vezes, quando quiser nos dar o prazer de uma visita. Não entendia porque insistia em me tratar com cerimónia. Havia algo naquele homem que lembrava outra época, um tempo em que aquela cabeleira grisalha brilhava e aquele casarão era um palácio no meio do caminho entre Sarriá e o céu. Apertou a minha mão e despediu-se, desaparecendo naquele labirinto insondável. Fiquei olhando enquanto ele se afastava, mancando levemente pelo corredor. A sua filha o observava tentando ocultar o véu de tristeza que encobria o seu olhar.
Germán não está muito bem de saúde, murmurou. Ele se cansa com facilidade. Mas desmanchou aquele clima melancólico logo em seguida. Gostaria de comer mais alguma coisa? Está ficando tarde, disse eu, lutando contra a tentação de aceitar qualquer desculpa para prolongar a minha permanência na sua companhia. Creio que é melhor eu ir embora... Ela aceitou a minha decisão e me acompanhou até ao jardim. A luz da manhã tinha espalhado a névoa. O início do Outono tingia as árvores de cobre. Caminhámos até à grade da entrada; Kafka ronronava ao sol. Ao chegar ao portão, a menina ficou no interior da propriedade e me deu passagem. Ficámos nos olhando em silêncio. Ofereceu a mão e eu a apertei. Senti o seu pulso sob a pele aveludada. Obrigado por tudo, disse. E desculpe... Não tem importância.
Dei de ombros. Bem... Saí caminhando rua abaixo, sentindo que a magia daquela casa se desprendia de mim a cada passo que dava. De repente, a sua voz soou às minhas costas. Oscar! Virei. Ela continuava lá, atrás da grade, com Kafka deitado a seus pés. Por que entrou na nossa casa na outra noite? Olhei ao redor como se esperasse encontrar a resposta escrita no chão. Não sei, admiti finalmente. O mistério, creio... A menina sorriu enigmaticamente. Você gosta de mistérios? Fiz que sim. Acho que se me tivesse perguntado se gostava de arsénico, minha resposta seria a mesma. Tem alguma coisa para fazer amanhã? Neguei, igualmente mudo. Se tinha alguma coisa, inventaria uma desculpa. Como ladrão, eu não valia um centavo, mas como mentiroso devo confessar que sempre fui um artista. Então espero você aqui, às nove, disse ela, perdendo-se entre as sombras do jardim. Espere! O meu grito a deteve. Você não me disse como se chama... Marina... Até amanhã». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT