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A
Letra Pitagórica
«(…) Parecia estar também debaixo
dos nossos pés. Ia a transmitir essa impressão aos meus companheiros, quando um
relâmpago súbito iluminou de uma fria lividez as paredes nuas da estância, logo
estalava e cascalhava um trovão seco, medonho, e dois violentos esticões
estremeceram o solo. Em brechas se fenderam e apartaram as lajes com fragor e a
abóbada e as paredes começaram a desabar. Instintivamente dei um salto para
debaixo da pesada mesa da cozinha, a tempo de me resguardar das pedras que
caíam e rebolaram durante segundos lentos, infindáveis... Quando tudo sossegou
e a última pedra rolou nos montes de destroços, procurei sair de sob a mesa,
mas não consegui. Estava encarcerado numa pequena gruta formada pelo tampo e pelo
entulho. Apenas havia um estreito buraco por onde a custo podia introduzir a
mão. Chamei: Diogo! Frei Gaspar! Acudi aqui! Felizmente Diogo havia-se deixado
ficar sob o arco ogival da porta e, embora a parede se tivesse quase toda
desmoronado, o arco aguentou-se firme e protegeu-o. Acorreu imediatamente e
conseguiu remover alguns pedregulhos, o que me permitiu sair. Estás ferido? Não.
E tu? Também não, graças a Deus! O nome de frei Gaspar acudiu-nos aos lábios.
Procurámos. De um montão de pedras e caliça saía um pé, um braço em estranha
posição, como partido, surgia mais acima. Ajoelhei, removi algumas pedras e a
cabeça ensanguentada apareceu. Curvado sobre ela, o medalhão a pender-me do
pescoço por um rasgão da camisa, segurei-lha e chamei: frei Gaspar! Abriu os
olhos. Reconheceu-me, o relicário balouçava-lhe diante da face muito pálida.
Notou-se-lhe o esforço que fazia tentando falar. Só consegui perceber-lhe o
nome de mestre Jacob. A cabeça descaiu-lhe, rendendo a alma, um fio de sangue a
escorrer-lhe pelo canto da boca. Ajoelhado também, Diogo rezava: requiem
aeternam dona ei Donúne ...
Ai de mim! Não era em rezar que
eu pensava naquele momento! Mas fui tirado das minhas preocupações por Diogo,
que, logo activo e prático, me disse não podermos ficar ali parados quando
tanta gente esperava certamente socorro. Não conhecíamos ainda a extensão do
sinistro, presumíamos ser muito grande e grave, mas não supunhamos vir a
encontrar uma visão tão horrível e apocalíptica como aquela que se nos antolhou
quando saímos: O nosso convento jazia por terra em escombros, a cidade tão
formosa que tínhamos visitado esse dia estava irreconhecível, poucos eram os
edifícios de pé e as próprias muralhas, tão grossas e fortes, haviam em grande
parte ruído. As pessoas começavam a juntar-se nas ruas, desorientadas,
angustiadas. De sob as ruínas vinham ais, choro, gritos, pedidos de ajuda,
Dir-se-ia que os montes de escombros tinham vozes fantasmagóricas. Na noite vagueavam
crianças seminuas chorando perdidas por entre os destroços à procura das mães.
Urgia acalmar a angústia, encaminhar e ordenar os braços válidos para as
tarefas de acudir aos feridos, amparar crianças e velhos, e enterrar os mortos,
não sobreviesse o flagelo da peste. Foram dias de pesadelo os que se seguiram,
em que só a piedade nos dava ânimo perante os quadros sanguinolentos dos
crânios abertos escorrendo a massa encefálica, olhos pendentes de órbitas
esvaziadas, peitos esmagados, barrigas desventradas, pernas e braços
estropiados. Em silêncio a maioria das pessoas trabalhava rezando, muitas vezes
com as lágrimas a rolarem em fio pelas faces a baixo, outras com um ricto seco
e severo na comissura dos lábios.
A
princípio notou-se que gente sem escrúpulos nem sentimentos se aproveitava da
ocasião para saquear a cidade. Todavia os meirinhos logo acudiram a pôr cobro
ao desmando, que esmoreceu mal se espalhou a noticia de que punham em execução
as mais pesadas penas para quem fosse apanhado a roubar e de que alguns já
haviam sido amarrados ao pelourinho... Improvisaram-se hospitais nas arcadas
onde ainda no dia anterior se realizara a feira, nos claustros que se tinham
conservado de pé. Médicos eram ajudados por freiras; homens chegavam com
colchões, cobertores, lençóis, toalhas; mulheres acendiam fogueiras nas praças,
ao ar livre, e faziam comida em grandes panelas para acudir a toda a gente. No
cemitério os coveiros caiam de cansaço e eram revezados por lavradores e outros
mesteirais. Tinham-se armado aí altares e constantemente sacerdotes diziam
missa a sufragar as almas dos mortos. Pouco a pouco a vida começou a
normalizar-se e o trabalho da reconstrução iniciava-se. Só quando me vi mais
livre é que me lembrei de mestre Jacob, certamente muito atarefado naqueles
dias, pois era médico. Procurei-o nos diversos postos hospitalares
improvisados, mas em nenhum me souberam dar noticias dele, ninguém o vira, os
seus colegas de ofício estranhavam até. Pensámos o pior. Corri à rua onde morava:
a casa era um montão de pedra sobre pedra. Um vizinho disse-me que ele e sua
mulher tinham ido a enterrar dois dias atrás. In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT