segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Mas há uma luz sem nome que me queima e das coisas criadas me esqueci. O louco saltimbanco»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Espessa
[…]
«Se te pertenço, separo-me de mim.
Perco meu passo nos caminhos de terra
E de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.
Se te pertenço perco a luz e o nome
E a nitidez do olhar de todos os começos:
O que me parecia um desenho no eterno
Se te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.

E por isso, por perder o mundo
Separo-me de mim. Pelo Absurdo.


Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pêlos
E tem entre entre as coxas um lixo de papéis:
Procura Deus, senhora? Procura Deus?

E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-te num salto desnuda o traseiro.


O louco estendeu-se sobre a ponte
E atravessou o instante.
Estendi-me ao lado da loucura
Porque quis ouvir o vermelho do bronze

E passar a língua sobre a tintura espessa
De um açoite.

Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz
À minha dura noite.


O louco (a minha sombra) escancarou a boca:
O que restou de nós decifrado nos sonhos
Os arrozais, teu nome, tardes, juncos
Tuas ruas que no meu caminho percorri
Ai, sim, me lembro de um sentir de adornos

Mas há uma luz sem nome que me queima
E das coisas criadas me esqueci.


O louco saltimbanco
Atravessa a estrada de terra
Da minha rua, e grita à minha porta:
Ó senhora Samsara, ó senhora
Pergunto-lhe por que me faz a mim tão perseguida
Se essa de nome esdrúxulo aqui não mora.

Pois aquilo que caminha em círculos
É Samsara, senhora
E recheado de risos, murmura uns indizíveis
Colado ao meu ouvido».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT