sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «… mais um fenómeno rude e natural do que seres humanos. De certa maneira, receava-os, não podia suportar que eles o observassem agora, que estava aleijado»

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«(…) Mas Clifford, desde que ficara estropiado, era extremamente tímido e embaraçado. Odiava ver pessoas a não ser os seus criados, porque tinha de estar sentado numa cadeira de rodas. Todavia vestia-se com a mesma elegância de sempre, fatos feitos por caros alfaiates e as habituais gravatas da Bond Street, e, sentado, parecia tão elegante e distinto como sempre. Nunca fora um dos jovens modernos, efeminado; até bastante bucólico, com o seu rosto corado e ombros largos. Mas a sua voz suave, hesitante, e os olhos ao mesmo tempo corajosos e assustados, firmes e inseguros, revelavam a sua natureza. A sua maneira de ser era muitas vezes ofensivamente arrogante, e, logo a seguir, modesta e humilde, quase trémula. Connie e Clifford estavam ligados um ao outro à maneira moderna, distraída. Ele estava demasiado machucado pelo choque que sofrera, ficar aleijado, para poder ser simples e superficial. Era uma coisa magoada e Connie por isso mesmo era-lhe apaixonadamente fiel. Mas não podia deixar de sentir que ele tinha realmente pouca ligação com as pessoas. Os mineiros eram, de certo modo, os seus homens, mas considerava-os mais como objectos do que como homens, partes da mina e não partes da vida, mais um fenómeno rude e natural do que seres humanos. De certa maneira, receava-os, não podia suportar que eles o observassem agora, que estava aleijado.
E a vida deles, estranha e rude, parecia-lhe tão anormal como a do ouriço-cacheiro. Era um homem remotamente interessado, como se visse tudo por um microscópio ou por um telescópio. Estava de fora. Estava afastado de todos, excepto de Wragby, por tradição, e, por um laço estreito de defesa familiar, de Emina. Para além disto, nada realmente o tocava. Connie sentia que estava longe dele, talvez porque não havia nada entre os dois, só a negação do contacto humano. No entanto, ele era totalmente dela, precisava dela em todos os momentos. Embora grande e forte, não podia fazer nada. Podia deslocar-se na cadeira de rodas e na cadeira de três rodas com motor, que lhe permitia passear lentamente pelo parque. Mas sozinho era como uma coisa perdida; precisava que Connie estivesse com ele, para lhe garantir que ainda existia.
Todavia, era ambicioso. Tinha começado a escrever histórias, histórias curiosas, muito pessoais, sobre pessoas que conhecera. Inteligentes, um pouco malévolas e, no entanto, estranhamente vazias de significado. A observação era extraordinária e peculiar, mas sem ligação, sem contacto real, era como se toda a acção se passasse no vácuo. E porque a vida hoje é muito semelhante a um palco artificialmente iluminado, as histórias eram curiosamente fiéis à vida moderna, à moderna psicologia. Clifford era sensível às histórias de um modo quase doentio. Queria que todos as considerassem de boa qualidade, da melhor, neplus ultra. Foram publicadas nas revistas mais modernas, e como é habitual foram elogiadas e censuradas. Mas para Clifford a censura era uma tortura, como se fossem facas a picá-lo, era como se todo o seu ser estivesse nas suas histórias. Connie ajudava-o no que podia. A princípio entusiasmara-se. Discutia com ela sobre tudo, numa voz monótona, insistente, persistente, e ela tinha de responder com todo o seu entusiasmo. Era como se toda a sua alma, o seu corpo e o seu sexo tivessem de despertar e passar para as histórias. Isto apaixonava-a e absorvia-a.
A vida material era limitada. Ela tinha de dirigir a casa, mas a governanta trabalhara para sir Geoffrey durante muitos anos, e a mulher que servia à mesa, seca, de certa idade, extremamente correcta, a quem não se podia chamar criada de sala, nem mesmo mulher, estava naquela casa havia quarenta anos. Até as outras criadas já não eram novas. Um horror! Que se poderia fazer em semelhante lugar, a não ser deixar as coisas como estavam? Todos aqueles salões enormes de que ninguém se servia, toda a rotina dos Midlands, o asseio e a ordem mecânicos! Clifford insistira em ter uma nova cozinheira, uma mulher bastante experiente que tinha sido sua criada em Londres. Tudo no solar parecia dirigido por uma anarquia mecânica. As coisas decorriam em perfeita ordem, dentro de uma limpeza e pontualidade estritas, e até de uma estrita honestidade. E, todavia, para Connie era uma anarquia metódica, nenhum calor humano a unia intrinsecamente. A casa parecia tão lúgubre como uma rua abandonada. Que poderia ela fazer senão deixar as coisas continuarem como antes? E assim fez. Miss Chatterley aparecia de vez em quando, com o seu rosto aristocrático e magro, e exultava ao ver que nada se tinha alterado». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT