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«(…) Nunca perdoaria a Connie por
a ter despojado da sua união psicológica com o irmão. Deveria ser ela, Emina, a
produzir esses contos, esses livros, com ele. Os contos Chatterley, algo de
novo no mundo, e que era deles, dos Chatterley. Não existia nada que os tivesse
precedido, nem nenhuma ligação orgânica, quer de pensamento, quer de expressão.
Apenas algo de novo no mundo: os livros Chatterley, inteiramente pessoais. O
pai de Connie, quando fez uma visita rápida a Wragby, disse à filha, a sós: aquilo
que Clifford escreve está em voga, mas é vazio. Não terá futuro!. Connie olhou
para aquele cavalheiro escocês corpulento, que sempre vivera bem, e os seus olhos,
os seus grandes olhos azuis espantados, tornaram-se vagos. Vazio! Que quereria
ele dizer com vazio? Se os críticos elogiaram, e o nome era quase famoso, e já
ganhava até dinheiro com o que escrevia..., que quereria o pai dizer com o vazio
dos seus contos? Que é que lhes faltava?
Connie adoptara o lema das
jovens: o momento presente era tudo. E os momentos sucediam-se sem relação
necessária uns com os outros. No segundo Inverno passado em Wragby, o pai
disse-lhe: espero, Connie, que não permitas que as circunstâncias te obriguem a
ser uma demí-vierge. Demi-víerge!, repetiu Connie,
num tom vago. Porquê? Porque não? A não ser que gostes, evidentemente,
respondeu o pai com vivacidade. Depois disse o mesmo a Clifford, estando os
dois a sós: receio que Connie não seja do tipo de mulher que se adapte a uma demivierge. Semivirgem, repetiu
Clifford, traduzindo, para ter certeza da expressão. Pensou por uns momentos,
depois ficou muito vermelho. Estava zangado e ofendido. Em que é que não se
adapta a ela?, perguntou, num tom duro. Está a ficar magra..., angulosa. Não é
o estilo dela. Não é do género de mulher magra como uma solha, é uma truta
escocesa das grandes.
Sem as manchas, evidentemente,
respondeu Clifford. Mais tarde quis falar no assunto a Connie, da história da demi-vierge, do estado de semi-virgindade
das suas relações, mas não foi capaz. Era, ao mesmo tempo, demasiado íntimo com
ela e não suficientemente íntimo para o fazer. Espiritualmente, os dois eram
como se fossem um só, mas, corporalmente, não existiam, e nenhum deles seria
capaz de falar no corpus delicti.
Eram muito íntimos e muito intocáveis. Connie sabia no entanto que o pai tinha
dito alguma coisa, e que essa coisa estava na mente de Clifford. Sabia que ele
não se importava que ela fosse meio virgem ou meio mundana, desde que ele o
ignorasse completamente e nunca fosse obrigado a saber. O que os olhos não
vêem, o espírito não conhece: não existe. Connie e Clifford viviam já há quase
dois anos em Wragby, aquela vida vaga de absorção por Clifford e pelo seu
trabalho. Os seus interesses eram todos canalizados para a sua obra.
Conversavam e discutiam na angústia da composição, e sentiam que algo se estava
a passar, realmente, que preenchia todo o vazio. E a vida era isto: vazio. Todo
o resto não existia. Wragby estava ali com os criados..., somente espectros
inexistentes. Connie dava passeios no parque e na floresta próxima, e
desfrutava a solidão e o mistério. Pisava as castanhas folhas de Outono e
colhia as primaveras. Mas tudo era um sonho, ou um simulacro da realidade. As
folhas de carvalho pareciam-lhe agitar-se, reflectidas num espelho, ela própria
era uma figura tirada de um livro, e que colhia primaveras que eram apenas sombras
ou recordações ou palavras. Não havia substância à sua volta, nada..., nada para
tocar, nenhum contacto. Somente aquela vida com Clifford, aquele entrelaçar permanente
de fios de histórias, das minúcias da consciência, aquelas histórias que sir
Malcolm considerava vazias e efémeras. Porque é que haviam de ter conteúdo e porque
é que haviam de ser duradouras? Cada dia tem o seu calvário. Cada momento, a
sua aparência de realidade». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio
D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
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