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A
Letra Pitagórica
«(…) Leva-nos a visitar a fonte
das termas, onde a água é tão quente que serve para curtir peles, além de que
tem muitas virtudes, não só bebida, para a cura de maleitas do estômago e
ventre, mas também em banhos, compreendíamos?, para os achaques das
articulações. Havia também uma fonte de boníssima água fria... Frei Gaspar
punha cuidado no falar, saboreava as palavras, havia sido professor de
Português de inúmeras gerações de jovens... As gentes do sítio serviam-se dela
para o seu consumo. Era em extremo gostosa e leve, fresca de Verão, branda de
Inverno, indicada para a desobstrução dos hipocôndrios, para caquéticos e
hidrópicos, para desopilar, para as diarréias. Dava-se muito bem com ela. Mas
ali estava a casa de mestre Jacob, físico muito competente e sabedor, seu
conhecido e amigo de longa data, que melhor que Sua Ignorância nos poderia falar
da excelência das águas destes lugares, se lhe dessemos o gosto de no-lo apresentar.
É uma casinha térrea, despretensiosa, muito branca e limpa. Bate à porta e não tarda
que venha abrir uma mulher dos seus quarenta anos. Ah! Sois vós, frei Gaspar?
Entrai, sejais bem-vindos mais a vossa
companhia. Entrámos. Mestre Jacob está? Aqui me tendes, frei Gaspar!, dizia
Jacob vindo de dentro. Há muito tempo que não passais por cá. Tendes estado
doente? O velho frade ia a esboçar a desculpa habitual que não mas que também,
Jacob continuava: mas via que trazia amigos... São dois noviços que vieram de
Évora a visitar-nos, Diogo e João. Íamos a passar, depois de termos apreciado
as caldas e a fonte de Santa Catarina, e falávamos da virtude daquelas águas
quando me lembrei que vós, como médico..., poderia dizer-lhes mais umas
patacoadas, com propriedade e autoridade, acerca dos seus benefícios. E fazia
uma vénia e abraçava-nos em sinal de satisfação por nos conhecer. Sejais
bem-vindos! São de facto umas águas magníficas e Milagreiras, mas deixai que
neste momento vos faça as honras da minha casa e vós.
Fale da virtude do pão de centeio
com queijo de cabra, feito aqui pela senhora Sara, e de uma boa pinga, de
estalo, do moscatel da minha lavra, que eu, apesar de físico, nas horas vagas
cultivo a minha leira. Sara já estava em acção e começava a estender na mesa
uma toalha de linho muito branco, que tirara de uma gaveta. Num gesto
espontâneo, eu fui ajudá-la e Diogo imitou-me. Ela achou muita graça e muito
insólita delicadeza. Não nos déssemos ao incomoda, dizia sorrindo. A um canto,
tendo-se afastado de nós por momentos, frei Gaspar falava baixo a Jacob e
mostrava-lhe um papel que me pareceu ser a carta do superior de Évora. Jacob
fitava-me curioso, pelo canto dos olhos. Sara pôs na mesa pão, queijo, vinho,
mel das suas abelhas, maravilhas de que, para não desfeitearmos tanta cortesia,
nos servíamos apesar do cedo da hora e, enquanto nós comíamos, a pretexto de
irem à cozinha por azeitonas ou outra qualquer iguaria marido e mulher num
breve instante cochicharam entre si olhando-me pela porta entreaberta. Como o
vinho, o pão, o queijo, o mel eram muito saborosos, resolvi para comigo deixar
para uma melhor oportunidade, para quando estivesse sozinho, a análise desses
olhares e cochichos misteriosos.
Despedidas
cordiais, com abraços e protestos de nos vermos brevemente. Jacob, quando me
abraçou, humedeceram-se-lhe os olhos e Sara, num gesto indizível e uma
expressão de suave mágoa, passou-me a mão pela face. Pareciam pais a despedirem-se
de um filho que não veriam nunca mais. Diogo ou não deu conta ou, na sua
discrição, fez que não viu. Durante todo o resto do dia andamos pela cidade.
Frei Gaspar fazia-nos parar diante de cada monumento, de cada pedra de que
conhecia a história. Agora apontava-nos o pormenor gótico do pórtico da Igreja
de Nossa Senhora do Castelo, ou no seu interior nos levava à Capela do Senhor
dos Passos, desta nova traça peculiar aos arquitectos de el-rei Manuel I que
gostam de lavrar na pedra objectos que nos recordem as nossas navegações,
cordame dos navios, algas marinhas, ondas do mar, peixes, esferas do Mundo,
cruzes de Cristo, característica certamente muito de apreciar pela novidade e independência
de imitação estrangeira... Duas grandes lápides aí estavam a chamar-nos o
olhar. São os túmulos, embutidos na parede, de Paio Peres e dos sete cavaleiros
cristãos... Pela tardinha regressámos ao nosso convento. Frei Gaspar, apesar de
caminhar muito devagar, parecia ter remoçado, as flores do rosto belas e
coradas, risonho e feliz por ter vivido um dia de liberdade fora da rotina conventual.
E, enquanto dentro de mim eu anotava este facto e o punha a par com os meus
escrúpulos de noviço cheio de dúvidas, chegava-me aos ouvidos a voz do velho
frade: digo-vos, meus filhos, que há muito tempo não tinha usufruído de um dia
tão maravilhoso e sentido um apetite tão sôfrego como agora sinto. A nossa
irmandade já se encontrava recolhida. Silêncio de cisterna e águas paradas, tão
cavo que os nossos passos ressoavam no lajedo e ecoavam pelas salas desertas.
Entramos de novo na cozinha abobadada. Um ruído surdo e prolongado chegou aos
nossos ouvidos. Ou se enganava muito ou íamos ter trovoada, enchiam todo o espaço
da quadra as palavras de frei Gaspar dirigindo-se para a despensa. Mas a mim
afigurava-se-me que não era só das nuvens que vinha o rumor». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT