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A
Minha Subida ao Evereste
«(…)
Seja por causa da pressão atmosférica ou efeito de embaraço gástrico, há dias em
que nos pomos a olhar o transcurso passado da nossa vida e o vemos vazio, inútil,
assim como um deserto de esterilidades por cima do qual brilha um grande sol
autoritário que não nos atrevemos a olhar de frente. Qualquer recanto nos serviria
então para recolher a vergonha de não termos alcançado um simples patamar donde
outra paisagem mais fértil se mostrasse. Nunca como nessas ocasiões se toma
maior consciência de quanto é difícil este aparentemente imediato ofício de
viver, que não parece sequer requerer aprendizagem. É nesses momentos que
fazemos decididos projectos de exaltação pessoal e nos dispomos a modificar o
mundo. O espelho é de muito auxílio no dispor das feições adequadas ao modelo
que vamos seguir. Mas sobe a pressão, o bicarbonato equilibrou a acidez, e a
vida vai andando, cambaia, como se levasse um prego no tacão e uma invencível
preguiça de o arrancar. De modo que o mundo será de facto transformado mas não
por nós. Não estarei, contudo, cometendo grave injustiça? Não haverá no deserto
uma súbita ascensão que de longe ainda precipite a vertigem ímpar que é o
lastro denso que nos justifica? Por outras palavras, e mais simples: não
seremos todos nós transformadores do mundo? Um certo e breve minuto da existência
não será a nossa prova, em vez de todos os sessenta ou setenta anos que nos
couberam em quinhão? Mal é se vamos encontrar esse minuto num passado longe, ou
no momento não temos olhos para outras ascensões mais próximas. Mas talvez haja
aí uma escolha deliberada, consoante o lugar onde falamos do nosso deserto
pessoal ou os ouvidos que nos escutam. Hoje, por exemplo, seja qual for a razão,
estou a ver, à distância de trinta e muitos anos, uma árvore gigantesca, toda
projectada em altura, que parecia, na lezíria circular e lisa, a haste de um
grande relógio de sol. Era um freixo de couraça rugosa, toda fendida na base, e
que desenvolvia ao longo do tronco uma sucessão de tufos ramosos, como andares
que prometiam uma escada fácil. Mas eram, pelo menos, trinta metros de altura.
Vejo um garoto descalço rodear a árvore
pela centésima vez. Ouço o bater do seu coração e sinto-lhe as palmas húmidas
das mãos e um vago cheiro de seiva quente que sobe das ervas. O rapazinho
levanta a cabeça e vê fá (?) no alto o topo da árvore que se agita lentamente
como se estivesse caiando o céu de azul. Os dedos do pé descalço firmam-se na
casca do freixo, enquanto o outro pé balouça o impulso que fará chegar a mão
ansiosa ao primeiro ramo. Todo o corpo se cinge contra o tronco áspero, e a árvore
decerto ouve as pancadas surdas do coração que se lhe entrega. Até ao nível das
outras árvores antes conquistadas, a agilidade e a segurança alimentam-se do hábito.
Mas, a partir daí, o mundo alarga-se subitamente, e todas as coisas, até então
familiares, se vão tornando estranhas, pequenas, é como um abandono de tudo, e
tudo abandona o rapaz que sobe.
Dez metros, quinze metros. O
horizonte roda devagar, e cambaleia quando o tronco, cada vez mais delgado,
oscila ao vento. E há uma vertigem que ameaça e não se decide nunca. Os pés
arranhados são como garras que se prendem nos ramos e não os querem largar,
enquanto as mãos buscam frementes a altura, e o corpo se contorce contra o
corpo vertical da árvore. O suor escorre, e de repente um soluço seco irrompe à
altura dos ninhos e dos cantos das aves. É o soluço do medo de não ter coragem.
Vinte metros. A terra está definitivamente longe. As casas rasteiras são
insignificantes, e as pessoas é como se tivessem desaparecido, e de todas
apenas restasse o rapaz que sobe, precisamente porque sobe.
Os braços já podem cingir o
tronco, as mãos já se unem do outro lado. O topo está perto, oscilante como um
pêndulo invertido. Todo o céu azul se adensa por cima da última folha. O silêncio
cobre a respiração arquejante e o sussurro do vento nos ramos. É este o grande
dia da vitória. Não me lembro se o rapaz chegou ao cimo da árvore. Uma névoa
persistente cobre essa memória. Mas talvez seja melhor assim: não ter alcançado
o pináculo então, é uma boa razão para continuar subindo. Como um dever que
nasce de dentro e porque o sol ainda vai alto». In José Saramago, A Bagagem do
Viajante, 1969, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
Cortesia
de ECaminho/JDACT