«Depois, nada mis que mereça crónica ou sequer lembrança. Oprimida pelas suas muralhas e pelas suas ruínas, que a divorciavam do mundo moderno, a antiga praça de armas estremenha caiu pouco a pouco na sonolência de um tardio envelhecer. Sem a sua paz interna jamais ameaçada por naturais ou estranhos, aceitou com resignação a decadência que o destino lhe impôs e, deperecendo sob a indiferença dos governantes ou por efeito do predomínio de certas ideias, a que chamavam «ideias novas», por buscarem a sua força agressiva no desprestígio do passado, qualquer que este fosse, quase pode acreditar-se que abjurou passivamente o credo histórico a que durante longos séculos foi fiel.
Isto não quer dizer que Óbidos tenha uma história bélica bem conforme com os arrogantes muros de praça forte. Depois dos tormentos que a dilaceraram em 1148, quando foi arrebatada ao jugo muçulmano e dominada por outro povo e outros costumes não menos bravios, é certo que logo em seguida readquiriu poder ofensivo e defensivo para novos empreendimentos ou novos sacrifícios; todavia, só muito raramente, como se sabe, achou ocasião de participar do tumultuoso fervet opus exigido pela formação da nossa nacionalidade.
O acontecimento que mais a lembra, nesse remoto período, é o da heróica resistência que em 1246 opôs ao cerco e aos assaltos com que encarniçadamente pretenderam submetê-la os parciais do Conde de Bolonha, então regente do Reino. Tal como o famoso Martim de Freitas, em Coimbra, também o alcaide-mor de Óbidos, cujo nome se ignora, tendo o o castelo por el-rei D. Sancho II, não consentiu em entregá-lo, nem se deixou vencer pelas poderosas hostes que à força o quiseram tomar. E tão valoroso, tão desinteressado foi esse acto de fidelidade, que o mesmo «Bolonhês», depois de proclamado rei, com o nome de D. Afonso III, logo o honrou publicamente, como soberano e como cavaleiro. Óbidos recebeu então, com efeito, além de várias mercês e privilégios foralengos, o título de «Sempre Leal», que conservou até aos nossos dias.
Esse antigo episódio constitui, em verdade, a mais bela e talvez a única página verdadeiramente notável da história militar de Óbidos. Estranhável esse facto, que atesta grande desproporção entre os seus recursos materiais de vila acastelada e os serviços prestados, em tão longa vida, ao rei e à grei? Não, por certo; pois é sabido que só as fortalezas raianas ou as praças fortes situadas na vizinhança das fronteiras terrestres foram deveras atingidas pelas tormentas guerreiras que tantas vezes se repetiram no decurso da nossa vida nacional. Certo, Óbidos não dista muito de outra fronteira, a marítima; contudo, essa, tal como era mantida e defendida, mais a protegia do que a ameaçava. Talvez por isso, o nosso «Rei Lavrador», embora se esmerasse no cuidado de lhe ampliar e consolidar as fortificações, não esqueceu também os seus direitos e privilégios de vila nobre, oferecendo-a afinal, como jóia de alto preço, a sua mulher D. Isabel de Aragão, a «Rainha Santa». logo que a recebeu por esposa, no terceiro ano do seu reinado.
E tão acertada se julgou essa mercê conjugal, que todos os demais reis, seus sucessores, o imitaram. Assim, aquele senhorio, que se diria fadado para apanágio de um grande capitão, ficou pertencendo sempre, até soar a hora das reformas liberais, à «Casa das Rainhas». Foi ali que uma das mais ilustres dessas donatárias, D. Leonor, mulher de D. João II e criadora da obra das Misericórdias Portuguesas, se refugiou em 1491, para chorar livremente a perda de seu único filho, o princípe D. Afonso, morto por desastre, em plena adolescência, 28 dias depois de ter sido festejado, «com a maior magnificência que até então se tinha visto na Europa», afirma um cronista, o seu casamento com a filha primogénita de Fernando e Isabel, os reis Católicos.
O castelo propriamente dito ainda chegou aos nossos dias com os muros exteriores, que medem cerca de 13 m de altura, sem danos ou mutilações que irreparavelmente desfigurassem ou de qualquer modo amesquinhassem a sua fisionomia, bem característica, de gigante medieval; apenas em um estreto lanço da fachada do poente era mais visível a obra demolidora da ruína geral. Esta, porém, assinalou-se por estragos ainda maiores em toda a parte interior, sobretudo na alcáçova, ou palácio dos alcaides-mores, cuja construção data, segundo a tradição, do século XVI. Obra de D. Manuel, como induz a bela decoração arquitectónica das janelas e da porta, assim como o escudo real e a esfera armilar, que ali se vêem também? Sim, não seria justo negar a participação do rei Venturoso na edificação desse palácio. Todavia, a par de tais emblemas, há ainda outro, não menos expressivo, o brasão dos Noronhas, bem próprio para confirmar a tradição que explica de diverso modo a origem da obra. Diz-se e com fundada verosimilhança, que o autor da iniciativa foi D. João de Noronha, alcaide-mor do castelo no primeiro quartel do século XVI, pai de outro, do mesmo nome, cujo mausoléu renascentista, existente ali mesmo, em Óbidos, na histórica igreja de Santa Maria, é um dos mais notáveis do nosso país». In IGESPAR.
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