Nikias Skapinakis, Encontro de Natália Correia,
Fernanda Botelho e Maria João Pires, 1974.
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«Ao nível das publicações também assistimos durante a primeira metade da década de 70 ao aparecimento da revista Colóquio-Artes (1971-1997), sob a direcção de José-Augusto França, e no Porto, em 1973, à Revista de Artes Plásticas. No ano seguinte seria, também da autoria de José-Augusto França, publicada A Arte em Portugal no Século XX, obra de referência para a historiografia artística nacional.
Ainda em 1973 - ano da morte de Picasso - três acontecimentos importantes merecem uma referência particular. Durante o mês de Abril realizou-se a exposição 26 Artistas de Hoje, reunindo na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) alguns dos trabalhos do conjunto de artistas distinguidos pelos Prémios Soquil.
Em Setembro desse ano era inaugurado, em Lagos, o monumento a D. Sebastião. Não é fácil encontrar uma figura cuja carga histórica, mítica e cultural, melhor represente a atmosfera passadista, pasmada e bloqueadora que impregnou a sociedade portuguesa durante largas décadas. Ao mesmo tempo, a figura de D. Sebastião foi uma das grandes fontes inspiradoras de uma atitude irracionalista, saudosista, reaccionária e imobilista que por muito tempo marcou correntes influentes do pensamento português. Estas considerações histórico-culturais ajudam a explicar porque é o D. Sebastião de João Cutileiro uma obra-chave deste período. Partindo da experiência técnica das suas "bonecas articuladas", o autor apresenta-nos o jovem rei como o menino que questiona o mito imperial dos portugueses, numa renovação da estatuária que definiria o novo limiar da escultura portuguesa, destronando em definitivo a linguagem escultórica do regime, protagonizada pelo trabalho de Francisco Franco. A inserção física da estátua numa praça de Lagos corresponde ao modo como o adolescente Sebastião pousa no chão o elmo e abre à sua volta um olhar claro e limpo, através do qual o seu corpo se deixa absorver pela luz.
João Cutileiro, Maquete de D. Sebastião - I, 1972.
Mármore
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De modo mais óbvio, outros eventos artísticos anunciam a iminência da mudança política. Em Dezembro de 1973 inaugura na SNBA a Exposição 73. Na sala de entrada uma representação escultórica realista de um soldado morto com a farda da guerra colonial - Jaz Morto e Arrefece de Clara Menéres. Por trás dele, na parede, um friso de pardos rostos silenciosos numa pintura de Rui Filipe. Na noite da inauguração uma performance de João Vieira envolvendo uma mulher nua pintada de dourado é ainda matéria de pequeno escândalo.
A 25 de Abril de 1974 é o "25 de Abril". A 10 de Junho, dia de Portugal, 48 artistas juntam-se para comemorar o acontecimento e pintar, em simultâneo, ao vivo, em directo diante do público e das câmaras da televisão um grande painel que tem como tema a liberdade. É um evento ingénuo e um pouco anedótico mas não vale a pena negar-lhe a sua autenticidade emocional e conjuntural. Durante a reportagem alguém diz a Júlio Pomar que a sua pintura é complicada. Pomar responde que a vida também é complicada.
No Porto, uma "comissão para uma cultura dinâmica" formada por artistas plásticos, escritores e poetas realiza nesse mesmo dia o Funeral do Museu Nacional de Soares dos Reis. O protesto - que envolveu cerca de 500 pessoas - era dirigido contra o sistema museológico português em geral, completamente anacrónico.
Os acontecimentos políticos de 74 vieram interromper o ritmo das exposições de artes plásticas, assim como o consequente trabalho da crítica. Das páginas dos jornais quase desaparecem as referências às práticas artísticas, embora a inevitável euforia da movimentação política tenha determinado, ainda que fugazmente, a renovação da participação cultural, com a aspiração a um novo tipo de relacionamento entre artistas e público em geral.
Como é habitual em períodos de agitação política pré- ou pós-revolucionária, vários artistas e práticas culturais foram instrumentalizados pelas mais primárias, anacrónicas e absurdas manipulações ideológicas. Se quisermos fazer um balanço, em termos estéticos, de toda esta agitação política, retenham-se os cartoons de João Abel Manta e os sumptuosos murais do MRPP, quase todos já destruídos.
José de Guimarães, Máscara com Tatuagens, 1973
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Entre os alinhamentos estéticos desses anos discutia-se, simultaneamente, a dialéctica entre figurativismo e abstracção, entre a pintura e a arte conceptual (ou as acções pós-conceptuais), e reviam-se as intenções, agora libertas da censura, do surrealismo e do neo-realismo portugueses. Procurava-se nas propostas mais ligadas ao exterior, dos conceptualismos vários às tendências pós-vanguardistas, a marca de uma renovação ou as referências mais evidentes da contemporaneidade. Entre o formulário conceptualista e o registo neo-figurativo reordenavam-se as propostas estéticas dos anos 70, numa tendência crescente para a afirmação dos percursos individuais de cada artista.
Nesta interrogação e revisão da modernidade promoveram-se algumas exposições, retrospectivas, mostras temáticas, decorrentes também da situação política e social do país (a título de exemplo refira-se a exposição Pena de Morte, Tortura, Prisão Política, SNBA, 1975). Divulgaram-se práticas e intenções plurais, revelando a multiplicidade da oferta, numa convivência harmónica entre gerações de artistas, estilos, dinâmicas e referências.
No campo das artes plásticas uma grande exposição - Alternativa Zero, Galeria Nacional de Arte Moderna, Belém, 1977 - encerra o período das convulsões pós-revolucionárias, fazendo o balanço da década de 70 no que diz respeito às experiências artísticas mais vanguardistas. Alternativa Zero, organizada por Ernesto de Sousa, constitui um balanço dos trabalhos que em Portugal se mostraram mais sintonizados com as tendências da evolução da arte contemporânea a nível internacional. Conforme o catálogo descritivo advertia a respeito do evento: "pretende ser 'algo mais' do que uma exposição: ou, encarando as coisas de outro prisma, pretende ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis 'nesta' sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la". As propostas conceptuais de Alberto Carneiro, ou de Clara Menéres com Mulher-Terra-Vida, e o vídeo de João Vieira, comprovam e exemplificam a linha plural orientadora da exposição, numa altura em que o vazio do mercado de arte não permitia uma verdadeira visibilidade das obras nacionais. A exposição intitulada Alternativa Zero - Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea marca assim o primeiro balanço dos trabalhos que em Portugal tomaram como referência as atitudes conceptuais e congéneres. Uma situação entre nós minoritária e marginalizada, da qual, no entanto, sairia uma primeira vaga de artistas que viriam a desempenhar um papel do maior relevo ao longo da década de 80». In Alexandre Melo, Centro Virtual Camões.
Cortesia de CVirtual Camões/JDACT
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