quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Daniel Innerarity: O Futuro e os seus Inimigos. «A fixação no presente conduz-nos a uma interrogação mais incómoda: temos mais direitos do que os nossos descendentes? Hoje, pelo contrário, parece que com a nossa absolutização do tempo presente pomos as gerações futuras a trabalhar involuntariamente em nosso benefício»

Cortesia de universico

A Tirania do Presente
«E também há razões demográficas que podem contribuir para a explicação do fenómeno em análise. Os eleitores da terceira idade são cada vez em maior número, de modo que este grupo exercerá nos próximos decénios um poder dominante no eleitorado. Como eleitores, os seus membros tendem a introduzir nos seus cálculos o montante e a segurança das suas pensões, uma orientação para o futuro que não é precisamente aquela consciência de responsabilidade em virtude da qual se leva em conta o direito dos outros em relação ao presente. Um último motivo desta focalização no presente diz respeito à própria configuração do espaço democrático e às possibilidades de pressão dos interesses. Nos processos democráticos não actuam apenas os eleitores e os eleitos, conforme critérios de estrita legitimidade; é um espaço aberto também à actuação de qualquer força social que esteja em condições de fazer-se valer, isto é, principalmente os interesses organizados e capazes de gerar conflito. Mas, além disso, a democracia contemporânea é especialmente vulnerável aos grupos de pressão.

A prática política habitual, que procura ir satisfazendo os interesses de clientelas particulares em vez de encetar as grandes reformas sociais, tende a decidir por efeito de pressões imediatas. E não há «lobbies» que articulem os interesses dos ausentes ou, simplesmente, os interesses futuros. Estaremos perante uma tendência inexorável ou haverá algum sinal que indique ter-se já percebido que está esgotado este tipo de política que só vê o presente? É certo que tem aumentado a sensibilidade aos problemas do futuro, à justiça intergeracional. Uma boa prova disso é a espectacular carreira do conceito de «sustentabilidade».

O campo de forças da sociedade pluralista modificou-se, de certo modo, com a irrupção desta nova sensibilidade que já deu origem à formação de grupos que lutam em nome de um futuro desejável. Mas a política continua a insistir em soluções que aliviam o presente e sobrecarregam o futuro, como se pode ver em âmbitos como os da política orçamental, da política social e da política ambiental.

Cortesia de fabiopestanaramos

Na política orçamental persiste a tendência para financiar boa parte dos gastos não com impostos mes com o endividamento. Há contra isso tentativas de elaboração de orçamentos equilibrados, como por exemplo as regras de estabilidade dos estados-membros da União Europeia decorrentes da unificação monetária. Há indícios de uma mudança de mentalidade, o que não significa que as democracias estejam em condições de praticar no âmbito orçamental uma política de responsabilidade em relação ao futuro. No terreno da política social continua a haver dificuldades quando se tem de equilibrar segundo critérios de justiça as pretensões e expectativas em matéria de pensões dos actuais reformados (ou dos que estão para se reformar) com a necessidade de assegurar o futuro do sistema geral de pensões, isto é, com os direitos dos pensionistas de amanhã, incluindo aqueles que hoje ainda não são eleitores. A política ambiental é o mais claro indicador do aumento de sensibilidade política em relação ao futuro. Se, contudo, examinarmos as coisas mais atentamente, verificaremos que as decisões de política ambiental são tomadas quando e na medida em que surgem perigos ameaçadores; é mais difícil praticar este tipo de política quando há que fazer sacrifícios no presente a fim de evitar consequências civilizacionais que só no futuro se tornarão visíveis.

Em vista de tudo o que precede, tem sentido querer saber se a democracia na sua forma actual está em condições de criar uma consciência do futuro suficiente para evitar situações de perigo afastadas no tempo. O pensamento e a acção de longo prazo, comprometidos com (uma adequada previsão do futuro, parecem entrar em contradição com os objectivos de curto prazo dos indivíduos consumidores ou com e governabilidade determinada pelo jogo das sondagens e da táctica do imediato.

A consequência lógica da tirania do presente é que o futuro fica desprezado, que ninguém se preocupa com ele. A «urgência dos prazos» impede que nos abramos ao horizonte não imediato. Impede-nos disso o poderoso peso do que tem de ser resolvido hoje mesmo. O futuro distante deixa de ser objecto relevante da política e da mobilização social, não só pelo descrédito das planificações ou pela sua perversão totalitária mas também por causa da urgência dos problemas agudos. Aquilo que está demasiado presente impede a percepção das realidades latentes ou previsíveis, que muitas vezes são mais reais do que o que actualmente ocupa todo o palco.

Cortesia de marciomorenawordpress

Ou será razoável prestar tão grande atenção às ameaças presentes que se deixe de ver os riscos futuros? Poderemos dar-nos ao luxo de sacrificar os projectos de longa duração no altar do curto prazo? Que será mais real: a transformação do clima ou o calor deste Verão? Estamos realmente dispostos a que as possibilidades actuais arruínem as expectativas do futuro?

A Coligação dos Vivos
A fixação no presente conduz-nos a uma interrogação mais incómoda: temos mais direitos do que os nossos descendentes? É justo formular uma «preferência temporal pelos actualmente vivos?». Não seria isso uma versão temporal do privilégio que alguns querem realizar no espaço, uma espécie de colonialismo temporal? Em ambos os casos se estabelece uma cumplicidade do «nós» em prejuízo de um terceiro:
  • se no exclusivismo dos espaços era o «de fora», no imperialismo temporal é «o de depois» que arca com as consequências da nossa preferência. E é isso que precisamente acontece quando o horizonte temporal se torna mais estreito e começa a configurar-se uma espécie de «coligação dos vivo» que institui uma verdadeira dominação da geração actual sobre as gerações futuras.
Inverteu-se aquele assombro de que falava Kant ao notar como era interessante que as anteriores gerações tivessem trabalhado penosamente pelas seguintes. Hoje, pelo contrário, parece que com a nossa absolutização do tempo presente pomos as gerações futuras a trabalhar involuntariamente em nosso benefício». In Daniel Innerarity, O Futuro e os seus Inimigos, Teorema, 2011, ISBN 978-972-695-960-1.

Cortesia de Teorema/JDACT