sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Manuel Cadafaz Matos. O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média. « Ao chegar o peregrino a Santiago de Compostela, constatamos naquele “Codex”, cada qual faz as suas vigílias, ajuizadamente, em companhia dos seus compatriotas. Uns, tocam cítaras; outros, liras; outros, tímbales; outros, flautas; outros, pífaros; outros, trombetas; outros, sambucas; outros, violas...»

Cortesia do institutoportuguesdopatrimoniocultural

«Mas a presença dos romeiros, mesmo que por várias horas ou poucos dias, nestas casas de apoio - que se contam entre as instituições de assistência social mais marcantes na Idade Média - leva-nos a constatar o peso que elas tiveram na própria corografia portuguesa. Tendo já anteriormente diversos investigadores tecido considerações em relação a tal matéria, embora não conheçamos, em rigor, nenhum trabalho da especialidade votado em particular à corografia de carácter jacobeu, podemos assinalar que a rampa de partida neste âmbito terão sido as "Memórias Paroquiais de 1758", que se contam entre os manuscritos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Importou-nos, assim, a partir dessas fontes, equacionar a questão da corografia portuguesa ao norte do Tejo. E para o fazermos não deixámos de optar pelos derivativos ou paralelismos onomástico-corográficos, que se prendem com peregrinar para Compostela desde o nosso país.
Temos continuado a analisar, desta forma, à semelhança do que aliás já se havia verificado em outros nossos anteriores trabalhos, para lá das aldeias ou vilas de nome S. Tiago (ou Santiago), Albergaria ou Albergue, outras cuja referência onomástica se prende com Estela (Estrela), Confraria, Mesão, etc. Em relação a esta última designação, não podíamos deixar de estar conscientes da sua estreita ligação onomástica com a casa de acolhimento, em língua francesa, "maison" em que no caminho jacobeu franco-espanhol pernoitavam os romeiros que demandavam a «casa santa» do Apóstolo.

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Nestas localidades em que, de um acerta maneira, mesmo que tal se nos apresente de uma forma de certo modo dissimulada, se pretendeu/ia «homenagear» ou invocar Sant'lago, permaneceram até aos nossos dias esses mesmos «resíduos» culturais de identificação com o culto jacobeu. Nessa procura de identidade com um mito ancestral, chegando mesmo à legitimidade de pôr em questão se o Apóstolo alguma vez tenha estado na Península lbérica, o homem procura como que desenterrar as raízes do seu passado ancestral, onde o ideal religioso e a apatia espiritual andavam estreitamente ligados.
Ao «peregrinar» por essas vilas e lugares, o romeiro, «regimentado», por um código de costumes muito próprio e que lhe era única e exclusivamente ditado pela tradição, sentia-se como que imbuído do espírito do «sagrado». A natureza física e geográfica do «caminho» ditava-lhes, assim, como que uma «regra de ouro», obrigatória.
O “Liber Sancti Jacobi- Codex Calixtinus”, cuja estruturação ocorreu entre 1139 e 1173, codificava, de uma forma titular indiscutível, todas essas manifestações de comportamento. Uma das partes dessa obra, designadamente o Livro Quinto, intitulado precisamente “Guia do Peregrino”, continha em si uma súmula de preceitos que todo o romeiro tinha piamente de seguir, a série de caminhos que conduziam até ao santuário de Santiago de Compostela, as jornadas do caminho para essa cidade, os nomes das povoações situadas nesses mesmos percursos, os «três bons hospitais do mundo», os nomes dos construtores da Estrada de Santiago, as águas doces e amargas que se podiam encontrar em tais caminhos, as qualidades das terras e povos, as santas relíquias que se podiam visitar e a paixão de S. Eutrópio, como é a cidade e a igreja de Santiago, a divisão das oblações do altar do Apóstolo, bem como a forma de os peregrinos serem bem recebidos.

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Ao chegar o peregrino a Santiago de Compostela, constatamos naquele “Codex”, «cada qual faz as suas vigílias, ajuizadamente, em companhia dos seus compatriotas. Uns, tocam cítaras; outros, liras; outros, tímbales; outros, flautas; outros, pífaros; outros, trombetas; outros, sambucas; outros, violas... Uns, com cítaras outros com diversos géneros de música, passam a vigília a cantar. Outros choram os seus pecados. Outros rezam salmos. Outros distribuem esmolas pelos cegos...».
Na primeira parte (ou primeiro livro) desse “Codex”, na secção precisa onde se encontram compendiados vários hinos alusivos a Santiago, a música da época, ou seja do século XII, constitui para os musicólogos um dos seus mais ricos repertórios. Em estudo efectuado por Thomas Binkley, regista-se que muitas das canções aí contidas são especificamente dedicadas ao Apóstolo. É o caso de um «Nostra phalans plaudat» “conductus”, que faz evocar ao cantor e ao ouvinte a história que se encontra associada a toda a prestação de culto a Santiago:

«Nostra phalans plaudat leta
hac in dié que athleta
Christe gaudet sine meta
Jacobus in gloria
Angelorum in curia
Quem Herodes decollavit
et id circa coronavil
illum Christe et dicavit
in celesti patria
Angelorum in curia
Cuius corpus rumulatur
et amutas visitatur
Et per illus eis datur
salus in Gallecia
Angelorum in curia
Ergo festum celebrantes
eius melos de cantantes
per solvamus venerantes
dulces laudes domino.
Angelorum in curia».

Ainda de natureza musical, é a página que, segundo Binkley, está apensa ao “Codex Calixlinus”, aventando-se mesmo a hipótese de ser anterior ao material que se lhe junta. Esse documento integra a canção «Dum Pater Famílias», que, pela sua forma e conteúdo, indica tratar-se de um canto de peregrinação». In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.

Cortesia de Instituto Português do Património Cultural/JDACT