Cortesia de purl
Lisboa, Paço Real de Enxobregas, 17 de Fevereiro de 1279
«No dia seguinte ao da morte de o “Bolonhês”, Madragana acordou sobressaltada com uma grande gritaria no Paço. Chamou a criada e pediu-lhe que fosse ver de que se tratava. A rapariga voltou passado algum tempo, completamente transtornada:
- Senhora, nem ides acreditarl Acabaram agora mesmo de dar com Abdul-Maalik morto no seu cubículo.
- O quê? tens a certeza!? - perguntou, sentando-se na cama e retirando o farto cabelo da frente dos olhos.
- Ouvi muito barulho para os lados da ala dos aposentos do falecido Dom Afonso. Corri para lá, e, pelo caminho, mais gente corria também. Era uma tal gritaria que não se percebia nada. Entrei na antecâmara, que estava cheia de gente, Matilde, Senhorinha e alguns fidalgos. Mas os guardas cruzaram as lanças e não deixavam passar ninguém para o quarto. Depois, saíram de lá os oficiais régios e, atrás deles, uns mancebos carregando o corpo de Abdul-Maalik numa padiola, todo roxo e torcido. Está um falatório dos diabos.
Ninguém sabe ao certo o que aconteceu.
- Temos de tentar saber. Estou verdadeiramente preocupada. E saltando da cama ordenou:
- Ajuda-me a vestir. Tenho de encontrar Estêvão Anes antes que comece a leitura do testamento. Ele deve estar a par do que aconteceu. Vamos... rápido. Traz-me qualquer coisa para vestir. Não percas tempo com combinações. Gontinha desapareceu e reapareceu num 6pice, trazendo num braçado umas bragas de 1ã muito delicadas; uma camisa alva, de linho finíssimo, com generoso decote; um brial rodado e de mangas extremamente largas, bordado a ouro finíssimo. Para acentuar a silhueta, o brial tomava a forma de espartilho, apertando desde sob o peito até ao início dos quadris com longas trenas, acentuando assim o busto, a cinta e a anca. Depois de se refrescar com água de rosas, a moura vestiu-se e penteou-se com a ajuda de Gontinha o mais depressa que o aperto de todas as fitas dos diversos elementos do vestuário o permitiu. Para toucado, em vez da habitual coifa, a criada escolheu uma simples rede dourada, com a qual prendeu a negra e brilhante cabeleira da ama.
Cortesia de wikipedia
Perfumada de almíscar, como habitualmente, e vestida de veludo preto, como convinha naquela hora de luto, Madragana deixou a sua alcova, voando e espalhando aquele perfume pelos corredores do paço. O brial enchendo na base como um balão e rodopiando em cada curva do caminho, tal era a velocidade com que se movimentava. Contudo, ao chegar perto da porta do grande salão de audiências, encontrou-a já fechada. Quando entrou, procurando uma cadeira pata se sentar, todas as cabeças se voltaram para ela, mirando-a como se fosse uma intrusa, apesar de ter todo o direito de ali estar. Estêvão Anes, que já começara o acto jurídico, salvou o momento, levantando apenas os olhos para ela e continuando a falar, o que obrigou toda a gente a voltar-se rapidamente para a frente a fim de lhe prestar atenção.
(…)
No seu testamento, Afonso III começava por pedir que o seu corpo fosse enterrado no Mosteiro de Alcobaça, junto dos pais, deixando ainda três mil libras para a construção do claustro. Ordenava que pagassem todas as suas dívidas e fossem corrigidas todas as malfeitorias e injúrias praticadas pelos seus homens. Os primeiros a serem referidos foram a rainha e o filho Dinis, nomeando-os seus executores testamentários, juntamente com mais quatro pessoas da sua confiança:
- o mordomo-mor,
- o chanceler,
- Afonso Peres Faria, da Ordem do Hospital,
- frei Geraldo Domingues, da Ordem dos Pregadores.
Seguiam-se as doações para cada um dos filhos varões, bem como as dos restantes. Dona Branca e Dona Sancha, filhas de Dona Beatriz, herdariam dez mil libras cada. A Dona Leonor, dita filha natural, que teve de Elvira Esteves, deixava a herdade de Água Morta. Finalmente, Martim Afonso, o filho de Madragana, receberia apenas mil libras. Havia doações a todas as sés episcopais. A algumas delas deixava tanto como a Martim, o que indignou Madragana. Seguiam-se os mosteiros e as ordens religiosas, numa lista interminável! Até ao papa doava cem marcos de prata! A enumeração de beneficiados continuava: os hospitais, as albergarias, os pobres, os leprosos do reino e os próprios presos.
Cortesia de wikipedia
Madragana foi alimentando até ao fim a secreta esperança de ainda ouvir ler, se não o seu, pelo menos o nome de Urraca Afonso, sua filha. Depois de rogar a D. Dinis que lhe viesse a suceder, respeitando a sua vontade, D. Afonso terminava as suas disposições delegando sobretudo na mulher, Dona Beatriz, que aparecia como testemunha daquele acto, jurando cumprir tudo o que ali estava determinado.
A moura estava inconformada. Como era possível que o seu rei a tivesse e à jovem Urraca desamparado. Parecia a Madragana que a rainha tinha conseguido uma grande parte do que pretendia, pois só Martim fora considerado herdeiro e apenas com mil parcas libras. A assembleia começava entretanto a reagir e a levantar-se dos seus lugares. O salão fora invadido por um murmúrio de vozes que comentavam o conteúdo do documento. Ainda não restabelecida da frustração, a moura continuava sentada, junto da porta, e ouvia os comentários de alguns fidalgos, em completo desacordo com certas decisões.
(…)
E Estêvão Anes desenvolveu uma série de argumentos com o intuito de consolar aquela mãe. Prometeu-lhe que nunca abandonaria os filhos dela, que, na verdade, embora ninguém soubesse, eram seus filhos também. Já mais calma, a moura perguntou-lhe o que tinha acontecido ao belo escravo sarraceno de Afonso III.
- Ainda é cedo para se ter uma ideia precisa. O que se sabe até agora é que Abdul-Maalik foi encontrado morto esta manhã na cama onde dormia, no cubículo junto à alcova do rei. Mestre Pedro e mestre Domingos das Antas foram chamados para analisar as possíveis causas da morte. Mestre Domingos diz que foi envenenado, porque a língua estava inchada, roxa, e os olhos muito abertos. Juntamente com a posição fetal do corpo, segundo ele, estes sinais indicam que terá tido algumas convulsões. Mas mestre Pedro desvalorizou isso e confirmou que o escravo morreu de ataque cardíaco, porque era muito afeiçoado ao rei e não suportou a sua perda. Em suma, não se entendem.
Cortesia de cmlisboa
- Em quem acreditas? - interrogou a amante.
- Apesar de tudo, em mestre Pedro. Onde já se viu... envenenado! Quem é que teria interesse em envenenar o escravo pessoal de Dom Afonso? Quando Maalik veio para a Corte era ainda um rapazinho. Realmente, o rei sempre o tratou muito bem, levando-o consigo para onde fosse. Acho que Maalik o encarava como se fosse seu pai e pode muito bem ter sucumbido ao desgosto.
Pela mente de Madragana passou, enquanto o chanceler falava, uma imagem difusa, uma lembrança longínqua e turva de uma noite em que, tendo sido chamada à câmara do rei, numa das variadíssimas vezes em que ele o fez para encenar a farsa de que dormia com ela, presenciara uma cena deveras invulgar. Quando lá chegou, Afonso estava já deitado e falou com ela por detrás dos véus que protegiam a sua alta cama de dossel. Porém, a posição dos tocheiros e das lucernas que ardiam junto ao leito permitia que tudo fosse perfeitamente visível para lá das cortinas. Enquanto o rei lhe recomendava que saísse pela passagem secreta e voltasse, sem ser vista, aos seus aposentos, Madragana conseguiu ver, para 1á das camadas de musselina, dois corpos nus masculinos, deitados lado a lado…
Essa foi uma visão que sempre a intrigara. Consciente de que tal revelação lhe poderia trazer dissabores, nunca nisso falara a quem quer que fosse e muito menos o poderia ter confidenciado a Estêvão. Tinha a certeza de que o chanceler nunca iria aceitar a verdade». In Maria Antonieta Costa, O Segredo de Afonso III, Clube do Autor, 2011, ISBN 978-989-8452-28-3.
Cortesia do Clube do Autor/JDACT