quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Maria Ana M. Guedes: Reis e Monges. Parte IV. Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630. « O mesmo acontece em relação à “Burma” das Histórias do Sueste Asiático, que deixam vontade de perguntar ou “o Arracão porque não é tratado aqui?” ou “porque é que o Arracão não é tratado no capítulo sobre a Birmânia?”»

Cortesia de foriente

Reis e Monges. Notas sobre a Birmânia além dos Portugueses
«Quando no séc. XIX os britânicos deitaram mãos à reconstrução da História da Birmânia, debruçaram-se essencialmente sobre o aspecto dinástico porque as fontes locais de que dispunham eram omissas em relação a outros aspectos. Quase um século depois o conhecimento das fontes alargou-se e uma nova geração de historiadores renova agora aquela perspectiva inicial. Mas as histórias de uns e outros, em particular as dos segundos, reportam-se à Birmânia Central tomada na acepção geográfica atrás apontada. O Arracão tem sido tratado à parte, quer em estudos distintos, quer em capítulos soltos. A ideia que fica, embora tal não seja afirmado, é a de que foi sempre tido por território alheio, uma espécie de país independente com uma organização política e económica própria. Na verdade, as histórias de «Burma», geralmente escritas por autores de escola anglo-saxónica, são a história da zona do império britânico, que foi também a dos antigos impérios birmanes.

O mesmo acontece em relação à “Burma” das Histórias do Sueste Asiático, que deixam vontade de perguntar ou “o Arracão porque não é tratado aqui?” ou “porque é que o Arracão não é tratado no capítulo sobre a Birmânia?”.

Cortesia de foriente

Debato-me assim com um problema conceptual que ultrapassa a intenção deste estudo, na medida em que não se trata de uma História da Birmânia, mas que se choca com ele, porque os Portugueses se estabeleceram também em espaços marginais a essa região de impérios levantados pelos birmanes. Com efeito, tais espaços correspondem a outras áreas geográficas e geopolíticas em que a Birmânia, tomada na sua extensão total, se pode dividir.

A este e a sueste, tanto a região do planalto Shan como a Costa do Tenasserim, distinguem-se das regiões montanhosas referidas (sobretudo habitadas por minorias étnicas). Ocupadas respectivamente pelos «shans», pertencentes ao grupo «Tai», e pelos «mons», constituíram zonas distintas geográfica e politicamente. Submetidas ora à suserania birmane ora à tailandesa, mantiveram uma certa autonomia em parte devido ao seu afastamento geográfico das formações políticas centralizadoras.
A oeste, o Arracão, estendendo-se para além das montanhas que rodeiam a Birmânia Central numa faixa costeira ao longo do Golfo de Bengala, constitui uma área geográfica e geopolítica definida. Entalada entre o mar e as montanhas, é uma zona litoral exposta à monção, e portanto excessivamente chuvosa. Os arracaneses pertencem ao grupo tibeto-birmane, pelo que mantiveram estreitas afinidades linguísticas com os birmanes do vale do Irrauadi. No entanto, o isolamento permitiu-lhes formar organizações políticas próprias, e na prática autónomas, rivalizando com os birmanes, a oeste e sudoeste, e com os bengalis, a norte e nordeste.

Cortesia de foriente

De ambos o Arracão foi feudatário nominal ou temporário. Mas sacudindo o jugo de uns e outros reafirmou a sua autonomia, chegando mesmo a subjugar territórios dos seus ex-senhores. Manteve a independência durante a fragmentação e reunificação político-territorial da Birmânia Central entre 1530 e 1630, apesar da hostilidade latente e de frequentes confrontos. Disputava-se, no caso, a supremacia não de zonas de um mesmo império mas impérios distintos, o arracanês e o mon-birmane.

O factor geográfico contribuiu para a união de mons-khmers e tibeto-birmanes na região central, mas separou arracaneses e birmanes, ambos tibeto-birmanes, revelando-se de maior peso que as afinidades etno-linguísticas. A descontinuidade geográfica entre o Arracão e a Birmânia Central é patente até na orientação dos elementos hidrográficos e orográficos que os constituem. Rios e montanhas orientam-se no sentido norte-sul, na região interior. As primeiras, dispostas em arco, funcionaram como contorno e fonte de identidade e unificação nacional. Separam-na do mundo exterior e são origem de estradas fluviais que unem a Alta e a Baixa Birmânia, entre as quais se destaca o Irrauadi que corta o país de Norte a Sul.
Diferentemente no Arracão, as montanhas são fronteira de onde descem os rios para Oeste, em direcção ao Golfo. A sua história revela essas duas facetas de território geograficamente virado para Oeste, posição que lhe proporcionou influências várias e até o avançar das suas fronteiras em território Bengali, conquistando Chatigão, hoje pertencente ao Bangladesh, mas ligado por laços étnicos e culturais a Este». In Maria Ana Masques Guedes, Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630, Fundação Oriente, ISBN 972-9440-28-X.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT