terça-feira, 13 de setembro de 2011

A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas: «E a Infanta? Quaes foram os seus pensamentos? Estaria do partido da mãe, que mal conhecera, pois a separaram d'ella aos dois annos? Inclinar-se-hia a favor dos reis, em cuja côrte fôra criada? Traçara, por ventura, um plano seu, proprio? Pensaria em casar em Portugal, impellida por desejos de uma vida desafogada e independente?»

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NOTA: Texto na versão original.

A Infanta D. Maria
«Tendo-a detido arbitrariamente e adoptado como filha não mais a podia deixar sahir de Portugal, salvo se a casasse antes. Nunca tratou comtudo seriamente de tal solução. Desprezou todas as combinações que a Rainha D. Leonor fazia de longe, para dar estado á filha. Pode-se provar, em face de documentos officiaes (correspondencia particular entre D. João III, D. Catharina e a Infanta de um lado, o imperador e D. Leonor do outro), que El-Rei procurou sempre adiar e estorvar os projectos de casamento offerecidos, e que o imperador seguiu o mesmo systema, embora com menos responsabilidade. Ambos haviam ao pé de si outras duas Marias, seu proprio sangue e seu amor. A essas é que consorciaram primeiro. É. o que podemos e devemos allegar a seu favor.

No tratado de Madrid, depois da batalha de Pavia, 14 de Janeiro de 1526, ficou ajustado o casamento da viuva de D. Manoel com o rei galanteador Francisco I «para que a paz entre a Hesp'anha e França fosse durável». A rainha D. Leonor, que venerava com amor profundo e respeitoso a Carlos V, cedeu ás suas instancias, cheia de esperanças illusorias, pondo uma unica condição: que ao mesmo tempo se concertasse o casamento do Dauphin com a Infanta.D. Maria, o qual se effectuaria logo que os dois principes tivessem doze annos completos, isto é em 1533.
Nenhum historiador indica os motivos que impediram o cumprimento d'esta clausula; póde-se presumir, porém, que foram as novas guerras entre os dois monarchas rivaes que obstaram ao enlace contractado. O que é certo é que o Dauphin viveu até 1536, morrendo na edade de 19 annos, quando a Infanta completara os 15. Desde então, os embaixadores das potencial estrangeiras começaram a encarecer em cartas e relatorios as virtudes e prendas da Infanta, não esquecendo, bem se vê, o lado positivo. O de Veneza informava do modo seguinte:
  • «Que havia em Portugal uma Princeza, por extremo rica, porque com o dote que tinha de 400:000 escudos havia ganhado nas Índias 300:000, não fallando nos 200:000 do dote de sua mãe, hypothecado nos Condados de Lorena, afóra joias e custosissimas roupas!»
E assim por deante.
Ainda em 1571 o secretario do cardeal Alexandrino chamava-a «a princesa mais rica da christandade», referindo-se a suas innumeraveis joias, e milhão de bens patrimoniaes, que ia gastando com os pobres.

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Para prevenir as sollicitações dos pretendenteq os tres paes, que não se cansavam de, á porfia, attestar palavrosamente o seu profundo e desinteressado amor pela Infanta, dispunham de um unico meio. E era: desposal-a novamente por «palavras de futuro», com qualquer principe muito criança. Escolheram dois.
  • O primeiro era o Duque de Orléans, filho mais novo de Francisco I, proposto e protegido pelos Reis Christianissimos, igualmente interessados na realização do plano, a Rainha com saudades da filha, o rei para se apoderar dos seus avultados bens de fortuna.
  • O segundo pretendente, apresentado pelo Cesar, era o Archiduque Maximiliano, filho e herdeiro del-Rei dos Romanos Fernando de Hungria, e futuro Imperador d'Allemanha (1558).
Restava ouvir a decisão de D. João III. Este depois de longas hesitações desculpou-se com a pouca idade da princesa e com outras razões mais politicas do que verdadeiras. Em vista d'isso, o Cesar decretou que o Duque d'Orléans se fiançasse com a filha do Rei dos Romanos e que o Archiduque fosse reservado para a sua propria filha:
  • «Pelo que diz respeito á Princeza de Portugal, porque a sua idade admitte alguma dilação, julga, confiando nas virtudes da Infanta e nas de sua mãe, fazel-a consentir n'estes casamentos, 1540».
N'este momento D. Leonor perde a paciencia. Magoada pela indifferença e pelas infidelidades do voluvel marido, indisposta seriamente contra as intrigas politicas do Imperador, e as hesitações do enteado, decide mandar vir a filha, tomando então o negocio do casamento entre mãos, já que nenhum dos tres paes o tratava com verdadeiro empenho. Era o unico meio de tornar a ver sua filha. Francisco I concordou facilmente com esses desejos e despachou para Lisboa o Bispo de Ade, 1542, como enviado extraordinario, reclamando a entrega da Infanta com todos os seus bens, numa forma cortês, mas com muita insistencia. A entrega, porém, não convinha a Carlos V, o qual, embora the agradasse annuir aos pedidos de sua irman predilecta, não podia ver passar, sem receio, os grandes cabedaes da sobrinha para as mãos de um rival poderoso e perfido.

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Traça por isso um novo plano. Dirigindo-se á Rainha de França, sua irman, expõe-lhe os perigos que podiam advir da entrega do thesouro, que forçosamente alimentaria novas guerras entre a França e Hespanha. D. Leonor hesita de novo, desconfiada e perplexa, diante da alternativa de prejudicar o Imperador afim de vêr sua filha, ou de sacrificar a sorte de D. Maria para favorecer a politica hespanhola. Atras do bispo-embaixador manda um mensageiro com instrucções secretas á Infanta, tendentes a neutralizar as instancias do diplomata, instrucções que se resumiam numa exigencia unica, impossível de cumprir-se, como bem sabia.

Reclama, ou melhor, manda reclamar pela bocca da filha, a entrega immediata do dote, em cumprimento do que se havia tratado com D. Manoel. Mas onde havia D. João III de ir buscar a somma enorme de um milhão de cruzados, em face de um thesouro vasio, de um paiz exhausto pelas empresas maritimas, e que tinha dado as reservas para tres casamentos successivos de familia, o d'El-Rei com a Rainha D. Catharina em 1524, o de sua irman, a formosissima Infanta D. Isabel, com o César, a qual levara em 1526 um dote opulentissimo, e finalmente em 1543 o de sua filha, a Infanta D. Maria, com o Principe D. Felipe de Castella que custou a Portugal 400:000 cruzados?
Em publico finge não poder separar-se de sua irman, «a quem criara desde a idade de seis meses como sua própria filha, com desvelo e encarinhado amor, nos tratos e costumes da sua corte». Lembra que seria contra o decoro deixá-la sahir de sua casa e do reino, sem primeiro estar honradamente arrumada. Particularmente, em conversa com a pudibunda joven, pondera hypocritamente os perigos da côrte francêsa, e «quão mal lhe estaria ir-se para Paris, vistas as deshonestidades que ali se praticavam!» Promette quatro contos annuaes para seu gasto, e pede que não mais lhe falle em similhante projecto.
Oh! Espectaculo odioso! Que rede de intrigas em torno da Infanta! Carlos V intercepta os correios portugueses, expedidos a França. Francisco I manda a Portugal um individuo como espia das cousas de Castella. D. João III colloca ao pé da irman uma mulher, que lhe dá, de continuo, aviso de quanto em sua casa se passa. D. Leonor contraria clandestinamente as instrucções officiaes que dera ao seu proprio embaixador.
E a Infanta? Quaes foram os seus pensamentos? Estaria do partido da mãe, que mal conhecera, pois a separaram d'ella aos dois annos? Inclinar-se-hia a favor dos reis, em cuja côrte fôra criada? Traçara, por ventura, um plano seu, proprio? Pensaria em casar em Portugal, impellida por desejos de uma vida desafogada e independente? Não faltaria quem lhe revelasse as verdadeiras intenções de D. João III, descobrindo enredos aviltantes, que deviam ferir profundarnente a sua dignidade?

É impossivel responder a taes perguntas. Fallecem-nos os documentos. Se a Infanta tivesse tido um confidente ou trocado cartas com uma amiga, um irmão, ou com a mãe; se houvesse confiado suas impressões corajosamente a um diario, livro de memorias e confissões, quão cheias de interesse não seriam essas paginas, desabafo de um espirito torturado, mas superior!
A embaixada do Bispo de Ade foi inutil! Vencidas mais uma vez, .a mãe e a filha procuram remedio nas suas virtudes, segundo a receita do Imperador! (21)». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.
Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT