quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Leituras. Parte XXII.Rui Cardoso Martins: Deixem Passar o Homem Invisível. «Chocalhava as cascas. Ficaste, molusco, no teu esconderijo..., respondia António. Mas no fim deixava-o em paz: a pessoa que come vê ou não vê, mas sobra sempre um esquecido no caldo de orégãos, no fundo dos panelões que perfumam Lisboa. E bebia outra imperial em honra do caracol desconhecido»

Cortesia de dquixote

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«António, também conhecido nas suas costas por aquele advogado que é cego, ou aquele advogado invisual, ou aquele ceguinho que tirou advocacia, depende de quem o via e a que distância, visitava a Igreja de São Sebastião da Pedreira pela segunda vez na vida. António tinha hábitos bizarros como gostar de arte e ir a exposições, e juntara durante anos argumentos para dizer como era isso possível no seu caso, até que os abandonou porque, concluiu, quem precisa da explicação não merece ouvi-la. Passou a dizer que era bom porque muitas vezes davam croquetes e taças de espumante na inauguração.
Não se zangou com ninguém, porque António também bebia cerveja à pressão e comia caracóis como qualquer pessoa que gosta disso. Chupava o molho da espiral, depois de fisgar o bicho com um alfinete, dos corninhos doces à tripa amarga, numa esplanada ao fim da tarde, principalmente em Maio e Junho, a altura deles. Duas imperais por petisco era a sua média, e a segunda pousava-a com um suspiro, um som honesto que deixava os clientes alegres. Lambia o bigode de espuma. Às vezes, limpando o molho dos dedos aos guardanapos de papel, perguntava se algum caracol escapara de ser comido, saltando do pires cheio para o pires das cascas sem lhe passar pela boca, acabando por morrer sem utilidade.

Cortesia de dquixote

Chocalhava as cascas. Ficaste, molusco, no teu esconderijo..., respondia António. Mas no fim deixava-o em paz: a pessoa que come vê ou não vê, mas sobra sempre um esquecido no caldo de orégãos, no fundo dos panelões que perfumam Lisboa. E bebia outra imperial em honra do caracol desconhecido. Esfarelava pão e dava-o aos pardais que o chamavam debaixo da mesa, piu, pulando a pés juntos como criancinhas, depressa, piupiu, antes que cheguem os pombos ladrões que correm como tu. Para os ouvir na cidade António usava solas de borracha, movia-se com leveza e nunca, dentro do possível, assustava o coração dos pássaros com a ponta da bengala. Não fazer tic-tic também era bom para escutar automóveis e não ser atropelado.
Ao entrarem na Igreja de São Sebastião, na semana anterior, a mulher falara-lhe das pinturas a óleo do tecto do coro, dos painéis de azulejo dos flancos, e descrevera-lhe o altar dourado. Helena, a mulher daquele advogado que é cego, desenvolvera um método rápido que permitia, em duas ou três frases, mostrar-lhe o ambiente geral dum edifício.
Helena casara com António numa história atribulada com a família dela, que evoluiu mais dum ano e meteu pânico, denegação, lições bem-intencionadas, conversas de envenenar a vida inteira, e depois terminara bem graças a Deus (era católica). Ela tinha dois olhos e via bem dos dois. Ele dizia-lhe seriamente, és a minha vidente, minha pastorinha, só tu vês o meu futuro:
  • vou para o céu ou para o inferno?
António era da opinião de que o humor não é aligeirar, é aprofundar. António também apreciava humor negro, um hábito que lhe vinha das crueldades da vida. De vez em quando, Helena fazia questão de mostrar ao marido lugares interessantes que conhecia pela cidade, em serviço do escritório ou à hora de almoço. Dizia que era comer a caminhar, ou caminhar a comer, segundo o grau de atenção que punha nas coisas. Entrava aqui por acaso, um beco, saía ali por curiosidade, uma travessa, escadinhas, praceta, e um dia voltava com ele porque gostava tanto de António que o queria a ver as mesmas coisas, passo a passo.

Cortesia de wikipedia

Ela nascera na província, numas florestas de pinheiros todos iguais, plantados no mesmo ano à espera de arderem criminosamente, anos depois ardiam e as pessoas choravam e gritavam ter perdido tudo, era mais ou menos isso e alguma agricultura e pecuária, e também uns vizinhos que tinham avós que se matavam à sacholada por culpa dum metro quadrado de xistos ou dum litro de água, com nascentes por todo o lado. Por isso, as saudades da terra de Helena viviam controladas pela crítica. Seria estúpido alguém aborrecer-se nos segredos de Lisboa, a névoa petrificada do império português.
No princípio do namoro, levava-o a um miradouro para sentirem o Tejo a subir pela cidade, colina a colina, telhado a telhado, até aos pulmões de António, ele respirava a calma húmida do rio e esperavam, de mãos dadas, a queda do Sol na grande ponte vermelha de ferro. As nossas mãos, como a ponte, juntarão o Norte e o Sul do país um dia se nos casarmos, disse finalmente Helena, uns pensamentos que lhe cresceram em silêncio, e ficou à espera. António respondeu que também tinha umas ideias a pôr em prática rapidamente, e sendo assim sussurrou-lhe ao ouvido:

sobre o rio atravessado
sou o grosso pilar central
e tu o tabuleiro deitado
ponte por cima de mim...

... e devagariiiinho como a grua do estivador no porto, levou a mão dela a um sítio alto dele, meio enganada, para estudar «uma questão de engenharia hidráulica» no colo, mas... a conversa acabou aqui meu parvalhão, o que foi amor dá cá um beijo, não gostei desse tom ordinário, ordinário porquê se era só um poema, rico poema sim senhor, vá lá um beijinho, larga-me palerma, ah ah casas mesmo comigo, caso mas não é assim não é de qualquer maneira porque tens que me respeitar». In Rui Cardoso Martins, «Deixem Passar o Homem Invisível», Publicações Dom Quixote 2010, ISBN 978-972-20-3828-7.

Com a amizade da Isabel, Ana e João
Cortesia de Dom Quixote/JDACT