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«A Lei morreu, e com ela o sistema, isto é, o sistema como ele tinha sido concebido e ainda, por algum tempo e dalgum modo, praticado. Fora da Lei, que resta aos governos?
A Força. Já não podem viver da Liberdade: viverão da Autoridade e para a Autoridade. O sistema constitucional transforma-se numa ditadura permanente, mais ou menos violenta, mais ou menos mascarada, mais ou menos patente, mas sempre autoritária e ilegal. E esta transformação não é fortuita e acidental. É necessária, sai da lógica inquebrantável das coisas, impõe-se como uma lei da natureza. A Força!
Eis o que só resta, e eis para que só apelam os sistemas sem princípios, que perderam a noção das ideias que os formaram, e que o espírito público, porque os não compreende já, abandona, mas que querem todavia viver e sustentar-se, porque são a máquina exaustiva com que uma classe de parasitas explora as nações iludidas e indiferentes.
O instrumento desta transformação é o militarismo. No prato da balança, aonde dantes pesava a Lei, põe o soldado a sua espada, e todo o mundo político pende logo para o lado da Força.
O Constitucionalismo há 40 anos que conserva e melhora esta arma que o há-de matar, o exército permanente. De que se queixa? Enquanto houve no país uma forte opinião constitucional, o sentimento liberal. Activo no povo, neutralizava as tendências brutais do exército. Hoje que a opinião abandonou, como um comparsa aborrecido do seu papel, a cena política, o soldado toma-lhe o lugar, e encarrega-se do papel principal.
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O pretoriano que corta a cabeça de Cícero não é só um facto histórico; é mais, é o símbolo duma lei histórica. Depois dos faladores do parlamento vêm naturalmente os roncadores do quartel. Os nossos Cíceros burgueses tinham de encontrar um dia, para lhes tapar a boca, a mão calejada do soldado. Tudo isto é naturalíssimo.
Mas o militarismo sabe porventura as condições em que se apresenta à sociedade portuguesa? Calcula acaso os recursos, os meios de vida de que dispõe? César tinha um mundo que dar a devorar às suas legiões: não faltavam pão nem dinheiro ao exército, para o qual trabalhavam vinte raças escravizadas, e a conquista alimentava a tirania.
Mas o exército português? Quem o há-de sustentar? O militarismo custa muito caro: e o povo português sofrerá mansamente muita coisa, menos uma só, pagar.
Já não há conquistas; e, que as houvesse, o exército português, hoje em dia, quando sai de casa não é para voltar como triunfador. A vergonhosa expedição da Zambézia está proclamando bem alto o que há a esperar destes famosos heróis de quartel. Berrar debaixo das janelas do Paço, aonde um pobre rei treme de medo, parece ser hoje o máximo esforço de valor a que se abalançam os nossos bravos.
O «deficit» será, pois, para o militarismo, como o tem sido para o parlamentarismo, o barranco insuperável. A força material cairá por uma irremediável fraqueza económica. Esta grande questão do imposto acabará de abrir os olhos ao povo.
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E, pondo de parte os velhos ídolos, cuja interior podridão já todos vêm, o povo, sequioso de justiça, liberdade e economia. Abraçar-se-á com a República, porque só nela encontrará liberdade sem corrupção, e força sem opressão. O marechal Saldanha, encarregando-se de mostrar, dum lado a inanidade do sistema constitucional, e do outro a impossibilidade do militarismo, vai prestar à causa republicana um serviço importantíssimo, e fazer adiantar prodigiosamente os nossos negócios.
Como não sabe o que faz, não lho agradecemos.
Mas, como a ambição é cega e a velhice pouco inteligente, cremos que cumprirá à risca o seu papel de destruidor.
É quanto dele esperamos (219)». De A República, 1870, nº 3.
In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.
Continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT