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«Está talvez nesta
preocupação, propriamente de revolução cultural, a grande originalidade
de um Antero de Quental, para lá mesmo das suas visionárias preocupações
sociais e das suas igualmente visionárias inquietações metafísicas, bem como a
de um Eça de Queirós, para lá mesmo das suas sucessivas e contraditórias
experiências estéticas, que vão do decadentismo, do dandismo e do
pré-simbolismo baudelairianos ao naturalismo de Flaubert e ao realismo ‘total’
de Zola. Revolução cultural no sentido de, esquematicamente:
- a Geração de 70 repensar e pôr em questão toda a cultura portuguesa desde as suas origens, fixando-se no ponto mais elevado e também mais complexo da história de Portugal, isto é, o período das Descobertas;
- a Geração de 70 preparar, pelo menos numa fase inicial, activamente, uma profunda transformação na ideologia política e na estrutura social portuguesas, isto é, a revolução republicana de 1910, com tudo o que ela teve de culturalmente positivo e negativo, e isto apesar da nítida separação entre socialismo e republicanismo, verificada sobretudo a partir da polémica entre Antero e Teófilo Braga a propósito da Teoria da História da Literatura Portuguesa, publicada por Teófilo em 1872.
Aliás, ao falar de
revolução cultural, não nos esqueçamos de que a palavra cultura é
derivada do particípio do verbo latino colere e que, portanto, está pela
sua origem, primeiro: ligada à acção, bem romana, de cultivar a terra (colere
agros); depois, a partir de Cícero, à cultura animi, ou seja, à
acção de modificar o espírito cultivando-o. O que significa que, por mais revolucionária
que seja, a cultura tende sempre para uma estabilidade, que é propriamente a
forma sólida, ‘telúrica’, do saber, tanto individual como colectivo.
A Geração de 70 não
escapa, nem, aliás, tenta escapar, a esta regra geral. Bem pelo contrário: é
uma geração que, para revolucionar culturalmente, procura uma profunda e
congregadora tradição cultural. Daí que, estando sem dúvida aberta, mais do que
a Geração de 1830, a todas as formas da cultura universal, tende a fazer
renascer uma cultura portuguesa, ou antes, uma ideia da cultura portuguesa.
Por outro lado, se é
certo que na base de toda a forma de cultura está a linguagem como sistema de
símbolos verbais indispensável à comunicação entre os homens, a Geração de 70
criou a sua linguagem própria, a qual anuncia nos seus momentos mais elevados a
linguagem modernista de um Fernando Pessoa ou de um Sá-Carneiro. Sobretudo
Fernando Pessoa, criador de paradoxos enraízados nos paradoxos da história de Portugal.
Fernando Pessoa que está finalmente mais próximo de um Eça de Queirós do que à
primeira vista se poderá supor.
Geração e Élite
Por último, haverá a
notar nesta introdução ao estudo da Geração de 70 que o conceito, sempre tão
ambíguo, de ‘geração’ é aqui adoptado na sua acepção mais restrita de criação
de ideias e de obras em que essas ideias se reflectem por um determinado
número, inevitavelmente restrito, de grandes figuras da literatura portuguesa
num determinado momento de confluência de tendências culturais. O sentido
cronológico do termo ‘geração’ só será, portanto, muito parcialmente respeitado.
Quer isto dizer que se evitará a mera enumeração enciclopédica, embora se tenha
a preocupação de proporcionar uma breve visão cronológica geral». In Álvaro
Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões,
Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT