quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Estou convencida de que talvez venha a encontrar nesta terra um amante mais fiel e melhor. Mas, ai de mim! Quem poderá despertar em mim o amor? Bastará a paixão de um outro homem para me encher? Teve a minha sobre si algum poder?»


Ilustração de José Ruy
jdact

«Os seus impertinentes protestos de amizade e as delicadezas ridículas da sua última carta mostraram-me que recebera todas as que lhe escrevi e que elas não provocaram no seu coração nenhuma emoção, apesar de as ter lido. Ingrato! E ainda sou tão louca que me sinto desesperada por não poder pensar que elas lhe não tinham chegado e que não lhas tinham entregado!
Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Porque não me deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida.
Não será para mim o cúmulo da desgraça saber que nem sequer fui capaz de o obrigar a ter o cuidado de me enganar e a sentir-se, ao menos, na obrigação de se desculpar? Pois saiba que me apercebo perfeitamente de que é indigno de todos os meus sentimentos e que conheço toda a sua malvadez.
No entanto, se tudo o que fiz por si pode merecer que tenha algum respeito pelos, favores que lhe peço, conjuro-o a que nunca mais me escreva e me ajude a esquecê-lo inteiramente. Se me desse alguma prova, pequena que fosse, de que a leitura desta carta lhe deu algum pesar, talvez ainda acreditasse; e talvez que até a sua confissão e o seu consentimento provocassem em mim despeito e cólera, e tudo isso poderia inflamar-me de novo. Por isso, não se meta mais na minha vida, pois, qualquer que fosse o modo por que nela quisesse entrar, sem dúvida deitaria por terra todos os meus projectos.
Nada quero saber do resultado desta carta; não perturbe o estado que para mim estou a preparar. Parece-me que pode dar-se por satisfeito com o mal que me faz, seja qual for o desígnio que tenha concebido de me tornar infeliz.
Não me tire desta minha incerteza. Com o tempo, espero transformá-la numa certa tranquilidade. Prometo-lhe não o odiar; por de mais desconfio dos sentimentos violentos para me atrever a fazê-lo.
Estou convencida de que talvez venha a encontrar nesta terra um amante mais fiel e melhor. Mas, ai de mim! Quem poderá despertar em mim o amor? Bastará a paixão de um outro homem para me encher? Teve a minha sobre si algum poder? Não experimentei eu que um coração enternecido jamais esquece aquilo que o fez conhecer transportes que não conhecia e de que era capaz?; que todas as suas emoções estão ligadas àquele que idolatrou?; que os seus primeiros sonhos e as suas primeiras feridas não podem ser nem curadas nem apagadas?; que todas as paixões que possam vir em seu auxílio e que se esforçam por o encher e contentar lhe prometem em vão um sentimento que nunca mais encontra?; que todos os prazeres que procura, sem qualquer vontade de os encontrar, só servem para bem lhe fazer conhecer que nada lhe e tão caro como a lembrança das suas dores?
Porque me fez conhecer a imperfeição e o desencanto dum afecto que não deve durar eternamente e as dores que acompanham um amor violento, quando ele não é recíproco? E porque hão-de, quase sempre, uma inclinação cega e um destino cruel conjugar-se para nos fazer prender àqueles em que só outro amor poderia encontrar eco? Mesmo que pudesse esperar alguma distracção num novo amor e encontrasse alguém de boa-fé, sinto por mim tamanha compaixão, que terei o maior escrúpulo em pôr, nem que seja o mais ínfimo dos homens do mundo, no estado em que por culpa sua me encontro. E, embora não seja obrigada a ter contemplações para consigo, nunca poderia resolver-me a exercer sobre si uma vingança tão cruel, mesmo que, por qualquer imprevisível mudança, ela dependesse de mim». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT