terça-feira, 28 de agosto de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «Digamos que a Africa aparece já, como uma sucessão de formas teratológicas, e esta tendência já se podia observar no Aristóteles que fazia da Líbia o território mais capaz de criar monstros animais, que por sua vez engendravam monstros institucionais»


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«Todavia o ‘bom selvagem’ permite uma revisão da própria teologia. Contrariamente ao que refere aBíblia no que diz respeito a Adão, os nossos primeiros avós teriam qualidades que o próprio ‘progresso’ da civilização, tinha posto em causa, dando origem ao ‘mau selvagem’ ,categoria que mobiliza naturalmente os muitos Outros indígenas, mas denuncia também a evidente perda de qualidade dos homens. Ainda não estamos no vocabulário do século XIX, associando degenerescência e decadência, mas já se sente a direcção do vento. Assim sendo, verifica-se a existência de vários patamares que precedem a mudança de epistema. Ou seja, a ‘revolução’ científica é precedida por uma miríade de revisões menores, que anunciam a indispensabilidade da mudança, ou, se assim se quiser, a necessidade da revolução.
Os estudos oitocentistas centrados no conhecimento da evolução das espécies, do homem e dos animais e das naturezas, permitem provar cientificamente a hierarquização dos homens, das sociedades, dos espaços geográficos. A existência de grandes plantígrados, de elefantes e de rinocerontes, fauna ameaçadora completada pelas muitas serpentes, sublinham o carácter maléfico do próprio território, situação reforçada pela elevada taxa de mortalidade dos colonos. Ainda se não tinham descoberto os mosquitos, mas já as sezões portuguesas tinham encontrado réplica na carneirada, que podemos hoje interpretar como a malária generalizada que, até hoje, continua a matar africanos e não africanos.
A reduzida esperança de vida prometida aos colonos contribuiu de maneira decisiva para a desvalorização do continente africano, onde havia contudo produções que permitiam a criação de um sistema comercial regular, sabendo os africanos estabelecer a relação dialéctica entre o valor de uso e o valor de troca.
O estudo continuado de elementos que caracterizam negativamente o continente, quer dizer o território (flora e fauna confundidas) e os homens (excessivamente nus, contrariando as regras teológicas e civilizacionais conhecidas), não podia deixar de ter efeitos, pois a selvajaria inventariada não permite uma história regular. Digamos que a Africa aparece já, como uma sucessão de formas teratológicas, e esta tendência já se podia observar no Aristóteles que fazia da Líbia o território mais capaz de criar monstros animais, que por sua vez engendravam monstros institucionais. Os continentes ‘selvagens’ caracterizavam-se antes de mais pelo vazio institucional, pela ausência da escrita, o que explicava e implicava a ausência da História.
O desfasamento foi por isso constante entre a história escrita, que somava heróis aos heróis, sempre justificados pela genealogia, e indispensáveis à criação da própria consciência e sentimento nacionais e a oralidade, sem história, reduzida a simples flatus vocis. Um dos marcadores mais eficaz da (não) história dos Outros é a sua completa ausência de heróis, pois até aqueles que, mais tarde, foram incluídos na história mítica, os heróis fundadores tão estudados pela antropologia, resultam do trabalho dos europeus. E os heróis que se opuseram à dominação colonial são eles também uma construção europeia. Veja-se o caso de Gungunhana, herói nacional moçambicano, produto da heroicidade de Mouzinho de Albuquerque e das acções portuguesas. A evolução económica das relações da Europa com os outros continentes exigiu o reforço da desqualificação dos africanos e dos americanos, embora esta operação acabasse também por arrastar consigo os asiáticos. A partir do momento em que os europeus iniciaram as operações destinadas a substituir os sistemas ecológicos nativos pelos sistemas ecológicos de carácter capitalista, tornou-se indispensável recrutar a força de trabalho suficiente. Os africanos foram escolhidos para esta operação, mesmo se à custa de uma contradição: missionários, comerciantes e funcionários estavam de acordo para denunciar a preguiça congénita dos africanos, que só podiam regenerar-se pelo trabalho: a produção africana, tal como parte importante da americana, será obtida por trabalhadores congenitamente preguiçosos! Como se a associação colonialismo/capitalismo, na verdade algum tanto pleonástica, fosse capaz de obrigar os preguiçosos a trabalhar, tornando-os rendíveis para os seus proprietários». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.


Cortesia de Caleidoscópio/JDACT