sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaes. António C. Franco. «A saudade na obra de Teixeira de Pascoaes assume de feito várias formas ou expressões, e prende-se com vários graus e objectos, quase todos eles mal conhecidos, se não mesmo inteiramente desconhecidos. Extremamente complexo, que não pode ser linear e simplistamente tratado»



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Quem deixa tudo pelo amado, deixa tudo: mas quem deixa pelo amado ao mesmo amado, ainda deixa mais; porque chega a deixar aquele, por quem tem deixado tudo”. In António Vieira, Sermão do Mandato, 1670.

«A saudade é geralmente considerada um dos núcleos fundamentais da obra de Teixeira de Pascoaes. Sabe-se que ela ocupa no poeta um lugar de relevo, mas pouco mais se sabe sobre o que ela possa ser. São muito poucos os que têm pretendido aventurar-se com disponibilidade e interesse nos caminhos da obra de Pascoaes procurando saber o que ela é concretamente.
A saudade é um sentimento invulgar, difícil de identificar e de definir de modo imediato, bem diferente da melancolia, cujo rosto é muito mais facilmente conhecido entre os que se ocupam ou se dedicam à poesia portuguesa, o que faz com que a grande maioria destes tudo o que sabe sobre a saudade na obra de Pascoaes é que ela caracteriza a sua poesia, que por isso designam de ‘saudosista’. Nada mais sabem dizer sobre ela, a não ser dois ou três lugares-comuns, que toda a gente mais ou menos ouviu repetir, e que pouco têm a ver com a obra do poeta.
Para complicar ainda mais as coisas, a saudade assume em Pascoaes um dinamismo transitivo, quase imparável, que vai multiplicando imagens e significados, num desdobramento de metamorfoses accionadas a partir do interior, máscaras que se revelam pedaços duma verdade sempre diferente e renovada, fragas escondendo novas fragas, que desorientam por completo o mais prevenido dos leitores e impossibilitam um rápido e preciso retrato da saudade.

O trabalho de fotografar a saudade, cujo rosto está velado por inúmeros véus, é muito mais complicado do que se pensa e estamos sempre, para além da dificuldade de a encontrar nos tantas vezes inacessíveis versos de Pascoaes, ameaçados por uma imagem negativa inesperada, surpresa a negro, que anula por completo a entrevista nas névoas dos seus versos e cuja recuperação se torna depois um paciente trabalho de localização e revelação cheio de surpresas, por entre superfícies cobertas de neblina e sem qualquer sinalização.
A saudade na obra de Teixeira de Pascoaes assume de feito várias formas ou expressões, e prende-se com vários graus e objectos, quase todos eles mal conhecidos, se não mesmo inteiramente desconhecidos. Os passeios cinegéticos em torno da saudade na orografia acidentada da obra de Pascoaes estão muito pouco desenvolvidos e as espécies conhecidas são raras e representam uma pequeníssima percentagem da fauna e da flora de conjunto.
A situação é tão difícil que são deveras muito poucos aqueles que têm já não uma ideia segura do que seja a saudade em Pascoaes, mas tão só que se trata na obra dele dum sentimento antitético, extremamente complexo, que não pode ser linear e simplistamente tratado.
Tenho para mim, dada a situação, que é necessário saber mais alguma coisa sobre a saudade na obra do poeta, abandonando se possível as ideias feitas e os lugares-comuns que até agora têm predominado sempre que dela se fala, e desenvolvendo o prazer da excursão pedestre, numa autêntica viagem de ‘reconhecimento’, pela riquíssima oridrografia de Pascoaes.


É preciso tentar um retrato mais fiel, que seja capaz de levantar de vez a injustiça que é catalogar uma obra a partir do que ela não diz, e seja ainda capaz de surpreender a saudade como criação metamórfica de sentidos, garantindo a partir daí a possibilidade de caminhar no sentido da poderosa propulsão vulcânica que se sente pulsar nela.
Diga-se que esta possibilidade vulcanológica, atingindo no coração da saudade as substâncias em fusão, nos interessa muito mais que a simples questão de repor justiça, pois consideramos como prioritária na leitura duma obra poética não a razão histórica ou o juízo de valor, mas antes a ‘razão poética’ e a hermenêutica, como formas da filia ou da compreensão que não excluem o conhecimento.
O que eu pretendo é compreender mais alguma coisa da saudade em Teixeira de Pascoaes, sem ter evidentemente a pretensão de tudo dizer ou de tudo compreender. É sempre impossível, a propósito seja do que for, dizer tudo, mesmo que não tenhamos consciência daquilo que nos falta dizer e que outros virão ainda a adiantar.
Aceite-se a leitura como um passeio solitário por um dos atalhos mais falados da obra de Pascoaes, mas cujo percurso continua por sinalizar, e por alguém que habituado ao montanhismo perigoso que ele exige não deixa de a cada passo se surpreender com a novidade ou o risco dos lugares revisitados, e portanto com a sua própria inexperiência e ignorância». In António Cândido Franco, Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaes, Edições do Tâmega, Amarante, 1994, ISBN 972-9470-12-X.

Cortesia Edições do Tâmega/JDACT