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«E além de solene saimento foram mandadas fazer em todos os mosteiros e
igrejas exéquias reais. E os pobres, que de tão pobres não podiam vestir luto, nem comprar
o caro burel, não podendo vestir-se de luto, tiveram de mostrar luto, e que por
isso andaram todos, e muitos são, com os vestidos virados do avesso.
El-Rei mostrou muito nojo, assim como toda a corte, e vestiu-se só de
panos pretos e os seus paços foram logo desarmados dos ricos panos de que
estavam armados e quando foi a Páscoa, ainda era luto, não se ouviu tangeres
nem houve danças, nem coisa alguma de prazer e ainda assim se fez até vir de
el-rei a nova de que pretendia casar-se e fazer-se de novo, e foi quando se
trocaram os panos de luto pretos por panos azuis menos carregados.
Além da morte, as penas da vida incomodavam muito el-rei. A sua saúde
era tão imprópria... Debilitava-se de sol a sol, piorava nas trevas da noute...
As varizes mordiam-no, e o seu maior prazer, longas caminhadas com os cães, era
cada vez mais raro.
As ideias, católicas mas tremendas, dos seus sogros, bem afincadas em
sua mulher até à morte, conduziram-no a pesadelos em que criaturas disformes e
ferozes o açoitavam por pecados cometidos e muitos por cometer. Não fora a-riqueza
dos reinos dos pais da mulher e há muito que desistira de olhar naquela
direcção das fronteiras.
Também as ideias, sempre entrouxadas de morte, torturavam-no amiúde.
Mesmo sua mulher, sucumbindo a um parto aziago, aparecia-lhe todos os dias em
sonhos ou estando ele acordado mas moído de tédio néscio, acusando-o ela de ser
ele um condenado e estava ela mais viva agora morta do que enquanto respirava…
Até seu filho resolvera morrer, o ingrato! Por isso, decidira tornar a casar. E
tinha de o fazer, irra, maldição!, com sua cunhada, isto se queria ir buscar ao
país vizinho as riquezas que tanto desejava.
Mas casar com outra assim? Sempre em oração, sempre temente de sombras
e presságios, dogmática, assustadiça e sem prazer algum pelo ‘prazer provado de
uma boa noute de insónia na carne? Irra, irra e ainda irra, diacho!
Gil, o camareiro-mor, que fazia mais as vezes de moço de câmara do que
da importância maior de camareiro alto, interrompeu el-rei, assim mergulhado em
tão sábias quanto mórbidas cogitações, anunciando-lhe que Gaspar, o navegador,
em companhia de um fradinho, acabava de chegar de muito longa e penosa viagem.
E trazia notícias de interessar.
El-Rei, dando de ombros, pensou que seria de facto necessário ouvir uma
notícia de arromba, a revelação de um mistério maior do que os mistérios, para
o deixar em pasmação. Aquela tarde de Estio sufocava-o, aliás, como todas as
tardes incendiadas dos Verões causticadores do seu reino de sol de inferno;
ardia também do desejo de paragens frescas, aquelas que ouvia descrever em
relatos de viagens e de aventuras dos seus navegadores privilegiados.
De resto, sentia-se acabrunhado; nem perante bom bromato se agitara,
tal era a vida desarrazoada que levava. Quanto ao bromato, e ao que se exigia a
alimentar el-rei, a coisa tem que se lhe diga. E por vezes, é seca.
El-Rei come, em princípio, sempre sozinho. Mas está geralmente rodeado
de gente, de pé ou de joelhos, de acordo o que se usa, e até pode dar, uma vez
por outra, a alguém a honra de o convidar a sentar e a comer com ele.
A criação dos moços fidalgos do rei é estarem de joelhos à mesa e
dar-lhes o rei fruta que lhe trazem para comer. O que se impõe é que receba
alguém sempre dois ou três passos fora do estrado em que assenta mesa e esse
com o barrete um pouco fora. Quando el-rei dá banquetes é frontal, não podendo
haver ninguém à sua frente. O serviço de mesa faz-se, esse sim, por essa frente
e é garantido, tal como nas restantes tarefas de sua casa, de moços seus,
escolhidos pela sua lealdade ou pelos serviços já prestados.
A fartura de mesa é um símbolo da liberdade régia. E quando levam a
mesa de el-rei, as iguarias vão sempre diante dois a dois porta-maças,
reis-de-armas arautos e passavantes, os porteiros-mores, quatro mestres-salas, o
veador e os veadores da fazenda e detrás de todos o mordomo-mor, e todos vão
com os barretes na mão até o estrado, onde fazem suas grandes mesuras e os
veadores da fazenda vão com os barretes na cabeça até o meio da sala e do meio
por diante os levam na mão e o mordomo-mor vai sempre coberto e até o fazer da
mesura que juntamente faz e tira o barrete. E é tamanha a cerimónia que dura
muito cada vez que vai à mesa e é assim com todas as cerimónias, pois el-rei,
há meses, só para entrar em Toledo levou três dias à entrada da cidade a preparar
todos os cerimoniais, e el-rei que tem paciência de pouco santo e que usa muito
a m…. em boca e varre amiúde a palavrão chatices que tem, por vezes insulta e
desanca a uns e a outros e a todos corre, menos ao moço que mais directamente o
servir, às vezes varre-os a pontapés de língua sem criação e até a chutos de
biqueira, e fica sozinho com seus comeres e farto de tudo, e preferindo assim».
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT