sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Feliciano Falcão. Memória Viva. José Régio e Portalegre. «O eco da sua poesia, da sua estética, de influxos renovantes, das suas capacidades críticas notáveis, da sua personalidade inconfundível, parece não ter chegado ainda a este recanto alentejano»


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De Feliciano Falcão
«Para os que vivem os problemas do espírito, José Régio, no nosso meio, é uma rajada de luz e de conforto intelectual. Para os que não vivem (fruidores de conceitos estreitos, improdutivos e inertes), o poeta, na sua radiosa projecção, confunde o amorfismo das suas consciências primárias e vazias. Neste número, e isto é preciso dizer-se sem eufemismos, está a maior parte da intelectualidade portalegrense.
De surpreendentes vistas em redor, com cenários exteriores que deslumbram, Portalegre - berço de Duro e de Cristóvão Falcão - por dentro é de uma apatia desanimante. É frouxo o entusiasmo para as impressões estéticas, para as manifestações do espírito, em demanda de uma sã arrumação da vida, num plano de larga e luminosa beleza. Mentalidade fruste, eivada de paixões medíocres, parcelar no juízo e fragmentária de conhecimento, invertebrada e anárquica em fúteis e provincianas críticas, a maioria da nossa elite, sem uma apreensão viva do todo numa integração dinâmica, oposição anacrónica com o surto de anelos que o mundo põe na nossa frente, em complicada e extenuante equação, voga ao sabor de ideias feitas, alheia ao marulhar da Vida plena, num desinteresse pela cultura, desorientador e pasmoso.
Vive-se de estímulos epidérmicos e banais. A percepção é de sensório. A visualidade é superficial e baça. Não há a noção de perspectiva e de síntese globalizada. É triste desenhar o quadro, mas a realidade é assim e tudo o mais seria figurar um rodeio de artifício que encobrisse o abulismo e a insuficiência.
Fala-se do analfabetismo das massas, mas o das elites não é menor e requer combate, também. Onde o amoroso interesse pela arte e pela vida das ideias? Onde o anseio de uma cultura que enobreça? (Que faça Homens?).
Assiste-se a uma estagnação miseranda, a um embevecimento de ‘asinus ad lyram’. É bem verdade, Régio na nossa terra vive como na história conhecida: olham para ‘ele’ como boi para palácio... Não é isto um sintoma de vida materializada e grosseira? Quantos aqui se apontam que conheçam o poeta dos ‘Poemas de Deus e do Diabo’, da ‘Biografia’, das ‘Encruzilhadas de Deus’ e o coloquem conscientemente no panorama das nossas letras?
José Régio, poeta, crítico, romancista e escritor de teatro, reside há mais de dez anos em Portalegre, para onde o trouxeram seus labores profissionais, sem que à sua volta, em tempo algum, sentisse um lampejo de curiosidade pela sua obra originalíssima e vibrante (não deixemos de dizer: dos mais extraordinários das nossas letras contemporâneas). O eco da sua poesia, da sua estética, de influxos renovantes, das suas capacidades críticas notáveis, da sua personalidade inconfundível, parece não ter chegado ainda a este recanto alentejano. Não se dá por coisa alguma. E, no entanto, estamos na presença de um singular temperamento de intelectual que dignifica nobremente o espírito, onde o poeta se individualiza como dos maiores da nossa língua e da nossa literatura poética de todos os tempos.


A poesia de Régio é uma dissecação abismal do seu ‘Eu’, opresso e torturante. As suas faculdades intelectivas e uma imaginação cautelosa, temperada de emoção rubra, se debruçam persistentemente sobre o seu ser anímico com um ‘élan’ criador de grandeza imperecível. Nas suas dúvidas íntimas, na sua solidão, autobiópsia exaustiva, se devassam os recessos psíquicos do Homem e se procuram interpretar os seus destinos, numa ânsia quase mística de libertação e beleza integrais. Subjectivista, vivendo de si, para si e dentro de si, numa dramatização perene), seu Ego hipertrófico, de aparente renúncia perante os problemas da existência, plasma as angústias e os anseios de todos os homens numa inquietação gritante. Todos os que, cogitando sobre a Vida, alentam supremas altitudes, ali se espelham numa realidade fúlgida.
E assim se esquematiza um dualismo chocante: numa ambiência morna e monótona, um poeta vive para que se não olha. Alegrete, Novembro de 1941. A Rabeca, nº 1203, 6-12-1941, p. 1».  
In Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.

P.S.: O que acaba de ler-se foi escrito antes das leituras de ‘Fado’, recentemente aparecido. Do multiforme poder criador de Régio nova faceta aqui se espraia, de motivos humaníssimos.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT