sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Herculano e a Geração de 70. João Medina. «Plantai batatas, ó geração do vapor e do pó-de-pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro (...). Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras (...), comprai, vendei, agiotai»



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«Oração nobre, preito de justa homenagem da figura maior da geração de 70 à figura máxima da geração liberal que amadurecera no exílio, embarcara no sonho palingenésico de Belle-lsle e desembarcara na jornada esplêndida do Mindelo, para acordar depois, tal como esse buliçoso Garrett, num país em que nada, ou quase nada, mudara, a ponto de finalmente se desenganar dolorosamente: enquanto Herculano garantia, em Outubro de 1851, já em pleno arranque da Regeneração para a qual concorrera, que a nossa ‘história política é uma série de desconchavos, de torpezas, de inépcias, de incoerências indesculpáveis, ligadas contudo por um pensamento constante, o de se enriquecerem os chefes de partido! (...). Hoje achá-los-eis progressistas, amanhã reaccionários; hoje conservadores, amanhã reformadores; olhai porém com atenção e encontrá-los-eis sempre nulos’; enquanto Herculano se desilude, recusa pastas ministeriais e acaba comprando com os seus direitos autorais uma quinta em Vale de Lobos, para onde se retira de vez, o seu émulo e polémico amigo Garrett grita, desenganadíssimo também:
  • Plantai batatas, ó geração do vapor e do pó-de-pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro (...). Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras (...), comprai, vendei, agiotai.
Quanto a Junqueiro, limitar-nos-emos por ora a transcrever um texto seu, cuja proveniência aliás ignoramos, tendo-o lido num artigo de Joaquim Pestana dedicado a Herculano e incluído no popular ‘Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1883’, de 1882:
  • Alexandre Herculano é uma dessas figuras esculturais que, antes de desaparecerem em pó, reaparecem em bronze. Ainda vivo, nos últimos anos, adquirira na penumbra heróica do seu isolamento, como que a imobilidade sagrada de uma estátua. Desde o dia em que, velho leão ensanguentado, se retirou de uma luta sem tréguas que durara quarenta anos, para se ir esconder na benigna e pacificante tranquilidade da natureza, desde esse dia em que para quase todos começa o esquecimento, começou para Alexandre Herculano a projecção gloriosa do seu génio, a imortalidade.
Consideremos agora a homenagem simpática e um tanto irónica, muito sui generis, aliás na sequência mesmo do texto garrettiano, prestada por Eça ao solitário ‘vencido da vida’ Herculano. Deixando de lado dois textos de pouco interesse, um das Farpas e outro, muito breve, da novela Alves & Ca, ocupemo-nos antes da crítica implícita num diálogo d'Os Maias. Explicando a Afonso da Maia por que razão não queria publicar livros, João da Ega diz:
  • Não vale a pena, sr. Afonso da Maia. Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...
Ao que o velho Afonso, figura toda herculaniana, até no seu desterro beirão e abandono da vida política activa depois das desilusões dum exílio inglês e outras desventuras, responde com mordacidade que nem isso Ega fazia, ou seja, nem ao menos contribuía para o bem nacional plantando legumes. Mas logo Carlos da Maia, perfeito diletante, ainda mais vencidista do que o blagueur de Celorico, reforça a ideia do amigo: A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerra lá no fundo.
E se não encerrar mesmo nada, remata Carlos, que nos demitamos então de País e passemos a ser uma fértil e estúpida província espanhola, e plantemos mais legumes. Neste diálogo, sob a aparência de meros chistes elegantemente trocados entre cavalheiros cultos da boa sociedade, encerra-se afinal, resumidas e caricaturadas, certas esperanças e desesperanças dos membros da geração do próprio Eça, postos de novo, como os revolucionários de 20, os vencedores de 1834 ou ainda os mentores de 51, perante a tarefa fundamental de refundir, reformar e regenerar todo um País amodorrado pela tirania, destruído por erros funestos, por viciada conformação sociológica, por tão graves taras e entorses da sua constituição material e moral. Herculano, posto diante dessa tarefa para ciclopes, tentara a reforma cultural, indagara historicamente as raízes mesmas da nossa formação, da nossa liberdade e dos descaminhos que a Nação levara desde os dias aziagos em que trocara o desenvolvimento interno pela aventura marítima e colonial. Mas acabara por desistir, acossado pela matilha dos filisteus, acolhendo-se à torre de marfim de Vale de Lobos, para ali continuar porém a servir, como lavrador e intelectual, o seu país: dava-lhe ao menos azeite e bons livros, levantava de quando em vez a voz para fulminar os marqueses de Ávila e outros pigmeus quando estes atropelavam a Liberdade que o soldado raso, antigo conspirador de 1831, combatendo o terror miguelista nos duros anos de exílio e em pelejas no solo pátrio, ajudara a fundar entre nós. E os homens da geração de 70, nascidos já sob a protecção macia e sonolenta das liberdades da Carta, sem precisarem de se expatriar em França ou na Inglaterra para fazerem vingar entre nós os princípios mínimos da convivência e da tolerância sociais, que tinham eles feito? Depois de atirarem farpas de papel do alto do Casino ou de outras tribunas literárias, acabavam, como o alquebrado Oliveira Martins, por se sentir realmente vencidos da vida ou, como esse alter-ego queirosiano chamado João da Ega, decretavam que a Choldra nem sequer os sabia ler. E desistiam também, mas nem sequer plantavam legumes. Jantavam no Hotel Bragança e alguns acabavam por cair na esparrela de ser ministros, logo trucidados pela cabala politiqueira, do rei Carlos I...». In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições Terra Livre, Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.

Cortesia de Terra Livre/JDACT