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«Com pouco dinheiro no bolsilho, umas só moedas de cobre que
soavam bem menos que os ferros do alforge, desembarcado numa cidade que mal
conhecia, tinha Baltasar de resolver que passos daria a seguir, se a Mafra onde
não poderia a sua única mão pegar numa enxada que requer duas, se ao paço onde
talvez lhe dessem uma esmola por conta do sangue perdido. Alguém lhe tinha dito
isto em Évora, mas também lhe foram dizendo que era necessário pedir muito e por
muito tempo, com muito empenho de padrinhos, e apesar disso muitas vezes se
apagava a voz e acabava a vida antes que se visse a cor ao dinheiro. Na falta,
aí estavam as irmandades para a esmola e as portarias dos conventos que proviam
ao caldo e ao tassalho do pão. E um homem a quem falte a mão canhota não tem
muito de que se queixar se ainda lhe ficou a destra para pedir a quem passa. Ou
exigir com um ferro aguçado.
Sete-Sóis atravessou o mercado do peixe. As vendedeiras gritavam
desbocadamente aos compradores, provocavam-nos, sacudiam os braços carregados
de braceletes de ouro, batiam juras no peito onde se reuniam fios, cruzes,
berloques, cordões, tudo de bom ouro brasileiro, assim como os longos e pesados
brincos ou argolas, arrecadas ricas que valiam a mulher. Mas, no meio da
multidão suja, eram miraculosamente asseadas, como se as não tocasse sequer o
cheiro do peixe que removiam às mãos cheias. A porta duma taberna que ficava ao
lado da casa dos diamantes, Baltasar comprou três sardinhas assadas, que, sobre
a indispensável fatia de pão, soprando e mordiscando, comeu enquanto caminhava
em direcção ao Terreiro do Paço. Entrou no açougue que dava para a praça, a
regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne, nos bois e porcos abertos,
quartos inteiros pendurados dos ganchos. A si próprio prometeu um festim de
viandas quando lhe desse o dinheiro para isso, não sabia então que ali viria a
trabalhar, um dia próximo, e que deveria o emprego, a padrinho sim, mas também
ao gancho que trazia no alforge, tão prático para puxar uma carcaça, para
escoar umas tripas, para arredar umas mantas de gordura. Tirando a sangueira, o
lugar é limpo, com as paredes forradas de azulejos brancos, e se o homem da
balança não enganar no peso, com outros enganos ninguém dali sai, porque em
qualidades de macieza e saúde é muito verdadeira a carne. Aquilo além é o palácio
do rei, está o palácio, o rei não está, anda a caçar em Azeitão, com o infante
Francisco e os seus outros irmãos, mais os criados da casa, e os reverendos
padres jesuítas João Seco e Luís Gonzaga, que decerto não foram só para comer e
rezar, talvez quisesse el-rei refrescar as lições de matemáticas e latinidades
que deles, quando príncipe, recebeu. Levou também sua majestade uma espingarda
nova, que lha fez João de Lara, mestre-de-armas dos armazéns do reino, obra
fina, adamasquinada de prata e ouro, que se a perder em caminho tornará prestes
a seu dono, pois tem ao comprido do cano, em boa letra romana embutida, como a
do frontão de S. Pedro de Roma, estes dizeres explicados:
- SOU DE EL-REI NOSSO SENHOR AVE DEUS GUARDE DOM JOAM O V, todos em maiúsculas, como se copia, e ainda dizem que as espingardas só sabem falar pela boca e em linguagem de pólvora e chumbo.
Essas são as comuns, como foi a de Baltasar Mateus, o
Sete-Sóis, agora desarmado e parado no meio do Terreiro do Paço, a ver passar o
mundo, as liteiras e os frades, os quadrilheiros e os mercadores, a ver pesar
fardos e caixões, dá-lhe de repente uma grande saudade da guerra, e se não
fosse saber que não o querem lá, ao Alentejo voltaria neste instante, mesmo adivinhando
que o esperava a morte».
In José Saramago, Memorial do Convento,
Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
Cortesia de Caminho/JDACT