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Sobre a história da sexualidade e da afectividade
«É de natureza diferente o segundo exemplo que queria apresentar
em seguida, para mostrar a dificuldade encontrada pelos historiadores no
tratamento desta matéria. Estou a pensar num cerro número de investigações
históricas acerca da prática da homossexualidade masculina e feminina. Os testemunhos
que os seus autores apresentam como evidentes nem sempre me parecem tão seguros
como isso. Como se sabe, as expressões que designam o comportamento sexual são
quase sempre eufemísticas ou metafóricas, sobretudo quando se referem a práticas
mais ou menos contestadas. O seu entendimento depende muito da imaginação do
leitor. Ora, em muitos textos, sobretudo literários, é impossível distinguir as
fronteiras entre a ficção e a realidade, ou entre a suspeita e a certeza; nunca
é de excluir que o autor se queira divertir a excitar gratuitamente a imaginação
do leitor ou pretenda lançar a suspeita sem se atrever a afirmar coisa alguma.
Ao atribuir significados precisos a tais textos, certos investigadores parecem
comprazer-se neles; não se exclui, da sua parte, um secreto desejo de legitimar
as suas próprias tendências sexuais ou de relativizar a norma condenatória do
que outrora, segundo eles, era permitido. O resultado de alguns destes estudos,
não de todos, convém não generalizar esta observação é, portanto, duvidoso.
Em suma, conhecidas as investigações históricas nesta
matéria, permanecemos muitas vezes desorientados e quase tão ignorantes como antes.
Suspeitamos de que o comportamento sexual foi noutras épocas diferente do
nosso, pelo menos em alguns pontos, mas pouco mais ficamos a saber do que isso.
Quer isto dizer que nada se pode saber a este respeito?
Também não é, tanto assim.
Na minha opinião, temos, antes de mais, de distinguir os
valores e as normas, o permitido, o proibido e o prescrito, a doutrina e a prática.
Temos também de distinguir os grupos sociais, porque a moral sexual não é a
mesma para todos. Temos, finalmente, de tentar descobrir não só a norma
expressa, mas também a subentendida, isto é, aquela que é considerada
socialmente correcta, embora não coincida estritamente com a norma proclamada
pelas autoridades oficiais, religiosas ou civis. Em termos gerais, podemos
conhecer com clareza suficiente os valores aceites por todos, algumas normas
positivas e negativas, quer as que se destinam a toda a gente, quer as que se
aplicam a grupos minoritários, sobretudo das classes superiores, mas devemos renunciar,
provavelmente para sempre, a saber o que se passava efectivamente na intimidade
do casal, pelo menos até ao século XIX, quer para o conjunto da população, quer
para a maioria dos grupos sociais. Não tenhamos ilusões, é inútil pretender obter
no passado resultados comparáveis aos do ‘relatório Kinsey’.
Finalmente, sou de opinião, confirmada pelos estudos que li
a este respeito, que as normas, valores e práticas podem variar ao longo dos
séculos, mas a natureza humana permanece razoavelmente igual a si mesma, pelo
menos desde que existem textos escritos, ou seja, desde há vários milhares de
anos. Isto é importante, porque é a natureza que mais directamente comanda os
afectos.
Vejamos algumas destas coisas mais de perto.
Comecemos justamente pelo afecto conjugal. Como o afecto é
por sua natureza espontâneo e livre, é ilusória qualquer tentativa para o
submeter a normas, mas constitui objecto de valores e, aqui no caso, até, de
valores altamente apreciados. Neste domínio, creio poder-se encontrar uma
grande permanência: o afecto conjugal é um valor desde que existem testemunhos
directos ou indirectos a seu respeito, isto é, desde os documentos babilónicos
de 3000 anos antes de Cristo, até aos nossos dias. Creio ter sido assim, mesmo
em épocas e sociedades cujas práticas e estruturas sociais não o favoreciam,
como, por exemplo, entre as classes superiores do fim do Império Romano ou
entre os cavaleiros da alta Idade Média. Os epitáfios dos túmulos, as estátuas dos
casais romanos e etruscos cujos gestos e expressões não enganam, as prescrições
dos moralistas, as tragédias gregas ou os textos dos oradores não permitem
outra conclusão:
- os Gregos e os Romanos apreciam o afecto conjugal, consideram-no um valor importante, cultivam-no; os estóicos declaram, mesmo, que a amizade entre marido e mulher é um dever, transformam o valor em norma prescritiva, antecipando-se assim aos cristãos.
Diga-se de passagem que não sei
se esta contaminação dos valores pelas normas trouxe vantagens, isto é, se
favoreceu efectivamente a prática, mas isso já é outra questão. Mesmo no auge
da violência feudal, mesmo sabendo nós que na Idade Média o casamento era quase
sempre decidido pelos pais e parentes sem nenhuma intervenção dos noivos, penso
que o afecto conjugal continua e ser um valor de grande importância: recorro
aqui de novo ao testemunho eloquente das ‘Cantigas
de Santa Maria’, às fórmulas usadas pelas doações do marido à mulher a
seguir ao casamento, as arras, aos romances de cavalaria, a muitas narrativas
hagiográficas e, naturalmente, aos sermões e homilias dos bispos e clérigos».
In
José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates,
Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.
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