O Banquete dos Sábios
«(…)
E assim
por diante. E eles, a cada vez, excogitavam uma resposta que fosse
simultaneamente respeitosa, original e em conformidade com sua ideia da manifestação
da omnipotência divina até mesmo no menor recôndito da existência humana. No
primeiro dia encontrava-se no banquete um filósofo grego, Mnedemo de Erétria,
um dialéctico que também frequentara a Academia platónica antes de se ligar à
escola megárica de seu mestre Estilpão. Mnedemo, que estava ali por parte do soberano
de Chipre, não tinha nenhuma intenção de se juntar àqueles debates na verdade
um pouco extravagantes. Qual é o cúmulo da coragem? Insistia Ptolomeu, e ainda:
como ter um sono não agitado? E como conseguir pensar somente em coisas boas? 'Como
escapar à dor? E como conseguir dar ouvidos aos outros? Qual é a maior negligência?
E como se dar bem com a própria esposa? Nem diante desta pergunta os velhos sábios
desanimaram. Sabendo que o sexo feminino é veemente e audaz, respondeu um
deles, e sobretudo irrefreavelmente inclinado ao que deseja, mas pronto a se deixar
desviar por um raciocínio errado, é preciso tratar a mulher com mente fria e
jamais enfrentá-la de forma que provoque uma disputa com ela. Então o caminho
segue recto, quando o piloto sabe o que quer. Mas invocando Deus dirige-se bem
a vida em cada um de seus aspectos. E como empregar o tempo livre? Deves ler,
respondeu-lhe um dos velhos, talvez ignorando que falava com o possuidor dos
livros do mundo inteiro, principalmente relatos de viagem referentes aos vários
reinos da terra. Dessa forma saberás cuidar melhor da segurança dos teus súbditos;
assim fazendo, alcançarás glória e Deus atenderá a teus desejos. Vê, disse
Ptolomeu dirigindo-se a Mnedemo, curioso por uma opinião sua, cercados de
improviso por todos os tipos de perguntas, responderam como exige a razão,
todos baseando-se em Deus para seus argumentos. Sim, Majestade, respondeu Mnedemo
com muito oportunismo, evitando discordar, posto que tudo dependa de uma força
providencial e assumindo-se como premissa que o homem é criatura de Deus, efectivamente
daí decorre que todo o vigor e a beleza de um argumento encontram seu princípio
em Deus. Exactamente isso, comentou Ptolomeu, sem entender que Mnedemo, no fundo,
evitara expressar sua opinião. Então cessou a discussão, assim dizia a fonte
que informou Aristeu, e todos se voltaram para a alegria.
Nesse ínterim, nos teatros de Alexandria (havia
cerca de quatrocentos ainda na época em que lá se instalaram os árabes)
sucediam-se em alegre promiscuidade dramalhões históricos, adaptados ao gosto
dos diversos povos que se misturavam na variegada metrópole. Entre os gregos,
muitos deles provenientes das cidades da Ásia, fazia sucesso um drama extraído
da história de Giges, narrada por Heródoto. E é quase supérfluo lembrar que o
elemento picante da história, quando Candaules, arrebatado pela beleza da
esposa, obrigava o seu ministro a se esconder na alcova para observar a rainha
se despir, garantia ao medíocre pastiche uma sucessão de réplicas. Não faltava
quem por diversão imitasse alguma cena. Nos teatros f requentados pelos judeus,
faziam furor as chamadas tragédias de um bom encenador, um tal Ezequiel, que,
numa série de quadros recitados por coros, dramatizavam os episódios mais famosos
e comoventes do Antigo Testamento: a história de Moisés, a fuga do Egipto, o cativeiro
babilónico. O fascínio desses temas era muito diferente do das histórias de harém
recolhidas por Heródoto, e mesmo alguns autores gregos ousavam encená-los. Por exemplo,
Teodetes de Fasélides tentou, mas f oi censurado. Mas agora que os sábios de
Jerusalém, a fina flor da doutrina rabínica, estavam em Alexandria, e além do
mais pareciam não apreciar essa mistura de sagrado e profano, tentou-se impedir
que os teatros encenassem a história sagrada. Além do mais, é claro que era
recitada em grego, língua a que também estavam habituados os judeus que frequentavam
tais espectáculos. E parecia quase ofensivo que, enquanto se iniciava com
tamanha solenidade sacra a desejada tradução grega do Pentateuco, circulassem
pelos palcos essas sub-reptícias traduções pouco confiáveis. Não seria bom
mostrar-se indulgente com a confusão reinante, acentuada pelo facto, como
apontara Demétrio num relatório ao soberano, de já circularem traduções gregas
não autorizadas, e de pouco valor, da sagrada escritura». In Luciano Canfora, A Biblioteca
Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, 1986, Companhia das
Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Egipto, Literatura, Luciano Canfora, Conhecimento,