segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Os Conquistadores de Lisboa. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Aterrada, Chamoa perguntou como poderia desatar tal nó sem afrontar Afonso Henriques? Se pusesse em causa a identidade do príncipe…»

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A intriga de Compostela 1140-1142

Arcos de Valdevez. Março de 1141

«(…) Que se passa nas minhas costas?

As vertigens do passado regressaram e a confusão assentou arraiais no seu espírito, quando escutou as frases seguintes do imperador: sabeis o que dizia o arcebispo de Compostela de meu primo? Tudo nele é um embuste, desde o nascimento! A minha cunhada bateu as pestanas, baralhada, mas foi obrigada a novo volteio naquelas mãos masculinas fortes, antes de ouvir da boca de Afonso VII a intriga que escutara já de seu pai. Afonso Henriques podia não ser o verdadeiro filho do conde Henrique e de dona Teresa, pois esse tinha nascido aleijado! Foi um milagre!, contestou Chamoa, fiel à história oficial. Os milagres são sempre tão oportunos..., comentou Afonso VII. Sempre a sorrir, este recordou que já sua mãe, a rainha Urraca, contava que Egas Moniz decerto trocara os bebés, colocando o seu filho mais velho no lugar do verdadeiro príncipe. O Lourenço Viegas?, espantou-se Chamoa. O imperador ignorou a pergunta e, com a frieza de um mestre das estocadas, atirou-lhe de súbito: vosso marido, Paio Soares, nunca vos falou disso? Confrontada com tão inesperada interrogação, Chamoa tropeçou e o duo parou de dançar. Atrapalhada, ela sentiu a cabeça andar à roda e foi o monarca leonês, qual gentil cavalheiro, a ampará-la.

Meu marido sabia e nunca me contou?

Eu estava demasiado longe para os ouvir e apenas me apercebi da clara angústia estampada no rosto de minha cunhada. A referência ao primeiro esposo abanara-lhe as mais sólidas convicções e balbuciou: Paio Soares só me contou o segredo da relíquia... Como se apenas quisesse o bem dela, Afonso VII recordou-lhe que Paio Soares fora alferes do conde Henrique e homem de confiança deste. Se conhecia o esconderijo da relíquia sagrada, certamente também saberia o segredo das crianças trocadas. Com um franzir de testa inquisitivo, o imperador questionou-a: não foi Afonso Henriques quem o matou, a mando dos nobres portucalenses, de Egas Moniz e de outros? Aterrada, Chamoa suspeitou pela primeira vez de que a morte de Paio Soares podia não se justificar apenas pelos ciúmes que Afonso Henriques lhe tinha, mas por algo mais sinistro, uma conspiração contra um dos poucos que conheciam a verdade sobre o nascimento do príncipe. Bela Chamoa, porque desejam Egas e Peculiar afastar-vos da corte?, interrogou-se o imperador, respondendo de imediato à questão que lançara. Temem que façais revelações incómodas! As pestanas de minha cunhada batiam cada vez mais velozes, mas o monarca leonês não se comoveu e aplicou-lhe um golpe final afiado, declarando que o esclarecimento daquela questão seria essencial para decidir o futuro do pai dela. Ou Chamoa conseguia desvendar o mistério das crianças trocadas, caso em que Gomes Nunes se mantinha como conde de Toronho, ou o seu adorado pai sofreria um exílio doloroso.

Nossa Senhora, Virgem Santíssima!

Aterrada, Chamoa perguntou como poderia desatar tal nó sem afrontar Afonso Henriques? Se pusesse em causa a identidade do príncipe, não só perderia o amor dele, como seria expulsa do Condado Portucalense! Era um beco sem saída, por isso exclamou: faça o que fizer, meu pai está perdido! Nesse momento, vi pelo canto do olho que finalmente Afonso Henriques se aproximava, irritado com seu primo por este monopolizar as atenções de Chamoa. Suspirei fundo, o pior passara, o meu melhor amigo não os vira enlaçados. Que quereis que faça?, angustiou-se Chamoa. O imperador baixou a voz e falou na morte do conde Henrique, em Astorga, muitos anos antes. Nesse triste dia, além de Paio Soares e de meu pai, Egas Moniz, também havia estado presente um confessor, que perdoara os últimos pecados do pai de Afonso Henriques. Talvez esse padre saiba a verdade, tentai descobrir quem é, terminou Afonso VII, virando-se depois para trás a sorrir, enfrentando Afonso Henriques.

Apesar deste alvoroço em Arcos de Valdevez, não chegara o momento certo de a intriga de Compostela tomar conta de Chamoa. A lealdade apaixonada de uma mulher só se quebra se ela se sentir traída, o que ainda não era o caso. Pouco depois, para evitar mencionar o que conversara com o imperador de Leão, Chamoa proclamou que devíamos saber por onde andavam a princesa Zaida e o almocreve Mem, pois Afonso VII iria atacar Córdova em breve e certamente que a vida dos seus queridos amigos poderia correr perigo. Mais uma vez, meus queridos filhos e netos, em Arcos de Valdevez, a minha cunhada adiou a desconfortável revelação da intriga de Compostela e nada me disse, preferindo desviar-nos a atenção para o Sul, para o mundo muçulmano, que andava, também ele, em violento turbilhão». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

 Cortesia da CasadasLetras/JDACT

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