A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos
de Valdevez. Março de 1141
«(…) Que se passa nas minhas costas?
As vertigens do
passado regressaram e a confusão assentou arraiais no seu espírito, quando
escutou as frases seguintes do imperador: sabeis o que dizia o arcebispo de
Compostela de meu primo? Tudo nele é um embuste, desde o nascimento! A minha
cunhada bateu as pestanas, baralhada, mas foi obrigada a novo volteio naquelas
mãos masculinas fortes, antes de ouvir da boca de Afonso VII a intriga que
escutara já de seu pai. Afonso Henriques podia não ser o verdadeiro filho do conde
Henrique e de dona Teresa, pois esse tinha nascido aleijado! Foi um milagre!,
contestou Chamoa, fiel à história oficial. Os milagres são sempre tão
oportunos..., comentou Afonso VII. Sempre a sorrir, este recordou que já sua
mãe, a rainha Urraca, contava que Egas Moniz decerto trocara os bebés,
colocando o seu filho mais velho no lugar do verdadeiro príncipe. O Lourenço
Viegas?, espantou-se Chamoa. O imperador ignorou a pergunta e, com a frieza de
um mestre das estocadas, atirou-lhe de súbito: vosso marido, Paio Soares, nunca
vos falou disso? Confrontada com tão inesperada interrogação, Chamoa tropeçou e
o duo parou de dançar. Atrapalhada, ela sentiu a cabeça andar à roda e foi o
monarca leonês, qual gentil cavalheiro, a ampará-la.
Meu marido sabia e nunca me contou?
Eu estava demasiado
longe para os ouvir e apenas me apercebi da clara angústia estampada no rosto
de minha cunhada. A referência ao primeiro esposo abanara-lhe as mais sólidas convicções
e balbuciou: Paio Soares só me contou o segredo da relíquia... Como se apenas
quisesse o bem dela, Afonso VII recordou-lhe que Paio Soares fora alferes do
conde Henrique e homem de confiança deste. Se conhecia o esconderijo da
relíquia sagrada, certamente também saberia o segredo das crianças trocadas.
Com um franzir de testa inquisitivo, o imperador questionou-a: não foi Afonso
Henriques quem o matou, a mando dos nobres portucalenses, de Egas Moniz e de
outros? Aterrada, Chamoa suspeitou pela primeira vez de que a morte de Paio
Soares podia não se justificar apenas pelos ciúmes que Afonso Henriques lhe
tinha, mas por algo mais sinistro, uma conspiração contra um dos poucos que
conheciam a verdade sobre o nascimento do príncipe. Bela Chamoa, porque desejam
Egas e Peculiar afastar-vos da corte?, interrogou-se o imperador, respondendo
de imediato à questão que lançara. Temem que façais revelações incómodas! As
pestanas de minha cunhada batiam cada vez mais velozes, mas o monarca leonês
não se comoveu e aplicou-lhe um golpe final afiado, declarando que o esclarecimento
daquela questão seria essencial para decidir o futuro do pai dela. Ou Chamoa
conseguia desvendar o mistério das crianças trocadas, caso em que Gomes Nunes
se mantinha como conde de Toronho, ou o seu adorado pai sofreria um exílio
doloroso.
Nossa Senhora, Virgem Santíssima!
Aterrada, Chamoa
perguntou como poderia desatar tal nó sem afrontar Afonso Henriques? Se pusesse
em causa a identidade do príncipe, não só perderia o amor dele, como seria
expulsa do Condado Portucalense! Era um beco sem saída, por isso exclamou: faça
o que fizer, meu pai está perdido! Nesse momento, vi pelo canto do olho que
finalmente Afonso Henriques se aproximava, irritado com seu primo por este
monopolizar as atenções de Chamoa. Suspirei fundo, o pior passara, o meu melhor
amigo não os vira enlaçados. Que quereis que faça?, angustiou-se Chamoa. O
imperador baixou a voz e falou na morte do conde Henrique, em Astorga, muitos
anos antes. Nesse triste dia, além de Paio Soares e de meu pai, Egas Moniz,
também havia estado presente um confessor, que perdoara os últimos pecados do
pai de Afonso Henriques. Talvez esse padre saiba a verdade, tentai descobrir
quem é, terminou Afonso VII, virando-se depois para trás a sorrir, enfrentando
Afonso Henriques.
Apesar deste alvoroço em Arcos de
Valdevez, não chegara o momento certo de a intriga de Compostela tomar conta de
Chamoa. A lealdade apaixonada de uma mulher só se quebra se ela se sentir
traída, o que ainda não era o caso. Pouco depois, para evitar mencionar o que
conversara com o imperador de Leão, Chamoa proclamou que devíamos saber por
onde andavam a princesa Zaida e o almocreve Mem, pois Afonso VII iria atacar
Córdova em breve e certamente que a vida dos seus queridos amigos poderia
correr perigo. Mais uma vez, meus queridos filhos e netos, em Arcos de
Valdevez, a minha cunhada adiou a desconfortável revelação da intriga de
Compostela e nada me disse, preferindo desviar-nos a atenção para o Sul, para o
mundo muçulmano, que andava, também ele, em violento turbilhão». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do
Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, História, Cultura e Conhecimento, Crónica,