segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Leopardo. Tomasi di Lampedusa. «O Príncipe foi raspar um pouco de líquen dos pés da Flora e pôs-se a passear de um lado para o outro»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Maio. 1860

«(…) Quando os camaradas sonolentos o vieram tirar (sim, haviam-no arrastado pelos ombros até à carreta, o que fez com que a estopa do boneco saísse outra vez para fora), foi acrescentado ao rosário da tarde um De Profundis pela alma do desconhecido. E, como a consciência das senhoras ficou satisfeita com isto, não mais se voltou a falar no assunto. O Príncipe foi raspar um pouco de líquen dos pés da Flora e pôs-se a passear de um lado para o outro. O sol poente projectava-lhe a imensa sombra sobre os canteiros fúnebres. De facto, não se havia falado mais no morto e, no fim de contas, os soldados são soldados precisamente para morrer em defesa do Rei. A imagem daquele corpo estripado voltava-lhe, porém, muitas vezes à memória, como para pedir que lhe desse paz pelo único meio possível para o Príncipe: superando e justificando o seu derradeiro sofrimento com uma necessidade geral. À sua volta pairavam outros espectros ainda menos atraentes que aquele; porque morrer por alguém ou por qualquer coisa está certo, é da própria natureza das coisas; mas era preciso saber ou, pelo menos, ter a certeza que as pessoas sabem porque ou por quem se morre.

Era isto o que perguntava aquela face desfigurada e era exactamente neste ponto que as coisas começavam a confundir-se na névoa. Mas é evidente que ele morreu pelo Rei, caro Fabrício, ter-lhe-ia respondido, se o Príncipe o tivesse interrogado, o seu cunhado Málvica, aquele Málvica escolhido sempre como porta-voz da multidão de amigos. Pelo Rei, que representa a ordem, a continuidade, a decência, o direito e a honra. Pelo rei que, sozinho, defende a Igreja e impede o desmembramento da propriedade, objectivos finais da seita. Magníficas palavras estas que se referiam a tudo quanto era caro ao Príncipe no mais íntimo do seu coração. Qualquer coisa porém soava falso ainda. Sim, o Rei; até aqui tudo estava bem; conhecia-o, pelo menos o que tinha morrido há pouco; o actual era apenas um seminarista vestido de general e, para dizer a verdade, não valia grande coisa. Mas isso não é raciocinar, rebatia Málvica; um determinado rei pode não estar à altura da função mas a ideia monárquica permanece válida na mesma. Também aquilo estava certo; mas os reis que encarnavam uma ideia não podiam ou, pelo menos, não deviam descer, através dos tempos, abaixo de um certo nível; senão, meu caro cunhado, também a ideia sofre com isso. Sentado num banco, ali estava ele contemplando, inerte, a devastação que Bendicó ia operando nos canteiros. De vez em quando, o cão levantava para ele os olhos inocentes, como a pedir-lhe um louvor pelo trabalho realizado: catorze cravos despedaçados, meia sebe arrancada, um rego obstruído. Parecia mesmo um ser humano! Chega, Bendicó, anda cá. E o animal acorria, poisava-lhe na mão o focinho sujo de terra, ansioso de mostrar-lhe que a tola interrupção do belo trabalho cumprido lhe havia sido perdoada. Oh! Aquelas audiências, aquelas muitas audiências que o Rei Fernando lhe havia concedido, em Caserta, em Capodimonte, em Portici, em Nápoles..., no inferno!

Ao lado do camarista de serviço, que o guiava tagarelando, com o bicorne debaixo do braço e os mais frescos ditos napolitanos nos lábios, percorria-se intermináveis salas de arquitectura magnífica e de um mobiliário desagradável (exactamente como a monarquia bourbónica), enfiava-se em corredores sujos e pequenas escadas vacilantes e chegava-se a uma antecâmara onde muita gente esperava: caras fechadas de esbirros, caras ávidas de suplicantes recomendados. O camarista desculpava-se, fazia-o transpor o obstáculo daquela gente vulgar e conduzia-o a uma outra antecâmara, a que era reservada às pessoas da Corte: um pequeno compartimento todo azul e prata dos tempos de Carlos III; após uma breve espera, um criado batia levemente à porta e chegava-se à Presença Augusta.

O gabinete privado era pequeno e pretensiosamente simples; nas paredes caiadas um retrato do Rei Francisco I e outro, de aspecto azedo e colérico, da actual Rainha; por cima do fogão, uma Madona de Andrea dei Sarto parecia espantada de ver-se rodeada por litografias coloridas representando santos da terceira ordem e santuários napolitanos. Em cima de uma mesa, com a lamparina acesa em frente, um Menino Jesus de cera; sobre a secretária modesta, papéis brancos, papéis azuis, papéis amarelos; toda a administração do Reino chegada à sua fase final, a da assinatura de Sua Majestade (D. G.). Por detrás desta barreira de papelada, o Rei, já em pé para não ser obrigado a levantar-se; o Rei com o seu carão gordo e mortiço entre umas suíças loiras e que vestia uma casaca militar de tecido grosseiro donde brotavam, em cascata roxa, umas calças tufadas. Dava um passo em frente com a mão direita já virada para o beijo que depois recusaria». In Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, 1958, Dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-467-6.

Cortesia de EdomQuixote/JDACT