sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Os Sete Pilares da Sabedoria. T.E. Lawrence. «Os povos do deserto revelavam-se tão pouco estáticos como os das montanhas. A vida económica do deserto baseava-se no fornecimento de camelos, e estes eram mais bem alimentados e criados nas pastagens…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As montanhas do ocidente e as planícies do oriente foram sempre as partes mais populosas e mais activas da Arábia. Particularmente no ocidente, as montanhas da Síria, da Palestina, do Hedjaz e do Iémen, de quando em quando entravam na corrente da vida europeia. Etnicamente, estas montanhas férteis e saudáveis pertenciam à Europa, não à Ásia, visto como os árabes olhavam sempre para o Mediterrâneo, e não para o oceano Índico, em virtude das suas simpatias culturais, dos seus empreendimentos, e, em particular, da sua expansão; o problema da emigração era a força maior e mais complexa, na Arábia, empolgando-a de maneira geral, embora variasse de intensidade nos diversos distritos árabes. Ao norte (Síria), a taxa de nascimentos mostrava-se baixa, nas cidades, e a de mortalidade muito alta, em virtude das condições insalubres e da vida agitada vivida pela maioria. Consequentemente, o excesso de agricultores encontrava espaço nas cidades, e ali era absorvido. No Líbano, onde as condições higiénicas haviam sido melhoradas, verificou-se grande êxodo de jovens, a caminho da América, êxodo que foi se tornando maior de ano para ano, e ameaçando (pela primeira vez desde os tempos dos gregos) modificar o aspecto de todo um distrito. No Iémen, a solução foi diferente. Não havia comércio exterior, nem um conjunto de indústrias que acumulassem populações em lugares insalubres. As cidades eram apenas mercados, limpas e simples como aldeias comuns. Portanto, a população aumentava devagar; o nível de vida baixava em demasia; e sentia-se, em geral, a congestão do número. Os habitantes não podiam emigrar para o outro lado dos mares; o Sudão afigurava-se terra ainda pior do que a Arábia, e as poucas tribos que se aventuravam por ali viam-se compelidas a modificar profundamente o seu teor de vida e a sua cultura semítica, para poderem existir. Não podiam tomar o caminho do norte, ao longo das montanhas; estas eram barradas pela cidade santa de Meca, e pelo seu porto, Jidá: este não passava de zona estrangeira, continuamente reforçada por forasteiros vindos da Índia, de Java, de Bokhara e da África, fortemente dotadas de vitalidade, violentamente hostil à consciência semítica, e mantida, apesar dos problemas económicos, da geografia e do clima, pelo factor artificial de uma religião mundial. A congestão do Iémen, portanto, tornando-se extrema, encontrou o seu único alívio no oriente, forçando os mais fracos agregados das fronteiras a descer pelas encostas das montanhas, ao longo do Widian, distrito semi-arruinado dos grandes vales dotados de água de Bisha, Dawasir, Ranya e Taraba, que corriam em direcção aos desertos de Nejd. Estas tribos mais fracas tiveram de trocar, continuamente, boas primaveras e palmares férteis por primaveras menos felizes e por palmares menos fecundos, até que, afinal, chegaram a uma área onde se tornara impossível toda vida agrícola regular. Começaram, então, a substituir a precária lavoura pela criação de carneiros e de camelos, e, com o correr do tempo, passaram a depender cada vez mais dos seus rebanhos para subsistir.

Finalmente, sob um último impulso da poderosa população que lhes ia no encalço, os povos da fronteira (já agora inteiramente pastoris) foram repelidos para longe, para fora dos oásis extremos e enlouquecedores, passando para o deserto pleno, e vivendo a vida dos nómades. Este processo, que pode ser contemplado hoje, através de clãs e de tribos, a cujas marchas deveria dar-se um nome exacto, fixando-se-lhes também as datas, vem se realizando desde os primeiros dias do povoamento do Iémen. Os Widians, abaixo de Meca e de Taif, estão repletos de memórias e de nomes de lugares de meia centena de tribos, que de lá saíram, e que podem ser agora encontrados em Nejd, em Djebel Shammar, no Hamad, e mesmo nas fronteiras da Síria e da Mesopotâmia. Esta foi a fonte da emigração, a fábrica de nómadas, a origem da torrente dos caminheiros do deserto.

Os povos do deserto revelavam-se tão pouco estáticos como os das montanhas. A vida económica do deserto baseava-se no fornecimento de camelos, e estes eram mais bem alimentados e criados nas pastagens dos rigorosos planaltos, em virtude dos espinheiros e espicanardos altamente nutritivos. Os beduínos viviam desta actividade; e isto, por sua vez, amoldou-lhes a maneira de existir, aumentou as áreas das tribos, mantendo os clãs na rotina das pastagens de Primavera, de Verão e de Inverno, no ritmo em que os animais devoravam os escassos brotos de cada estação. Os mercados de camelos na Síria, na Mesopotâmia e no Egipto determinaram a quantidade de população que o deserto poderia comportar, regulamentando estritamente o seu padrão de vida». In T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

JDACT, T.E. Lawrence, Literatura, Conhecimento, África,