sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Nossos dias eram gastos em conseguir comida suficiente para nos alimentarmos, e era isso que estava ocupando minha mente. Eu sabia que era um pedinte melhor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Você atacou essa mulher!, gritou para o pedinte. N-Não, gaguejou o homem, confuso. Eu apenas pedi uma moeda. Olhou para mim, como se eu pudesse confirmar o que ele dizia. Amedrontada, sacudi a cabeça e solucei novamente. Ele me tocou. Por causa disso, vai morrer!, bradou Ramón, e tentou puxar a espada da bainha. Ele, porém, não tinha praticado muito para conseguir fazer isso com apenas um movimento. A espada ficou presa na sua túnica, ele praguejou e sacou a adaga do cinto. O pedinte virou-se e saiu correndo pela porta lateral. Ramón saiu em perseguição, e eu, apavorada por ter sido deixada sozinha, ergui as saias e corri atrás dos dois.

Saulo

Eu tinha visto meu pai entrar na igreja pela porta lateral. Mordi o lábio, constrangido, ao me dar conta de que ele foi muito humilde e receoso de entrar pela porta principal. Ele não sabia que eu estava lá; que o seguira durante a última hora enquanto ele caminhava penosamente pela cidade, mendigando. Meu pai teria ficado envergonhado se soubesse que seu filho presenciara pessoas o rejeitando e um Grande do Reino empurrando-o para o lado e cuspindo na rua, enquanto ele passava. Ele pensava que eu estivesse com minha mãe, sentado ao lado do colchão de palha onde ela se encontrava deitada, incapaz de se mexer por causa da doença que a derrubara algumas semanas antes. Supostamente, eu devia permanecer a seu lado e tentar mantê-la quieta, pois na noite anterior ela passara a berrar palavras numa língua desconhecida para mim. Quando isso começou, meu pai ficou muito aflito e tentou silenciá-la para que os vizinhos não a ouvissem falar nessa língua estranha. Então ele acariciou a ua cabeça, ao mesmo tempo que murmurava, meio que cantando, um poema no seu ouvido. Isso pareceu acalmá-la. Quando lhe perguntei o que havia dito, ele me respondeu que era a fala dos anjos. Mas reconheci a sua expressão: eu já a tinha visto antes no seu rosto, noutros lugares onde vivemos, quando ele decidiu que estava na hora de nos mudarmos; o mesmo olhar de um animal caçado que fareja perigo. Toda a minha vida tínhamos viajado de cidade em cidade. Nessas ocasiões não pensei muito sobre o motivo disso. Nunca havia dinheiro suficiente. Qualquer um que conseguíamos meu pai usava para comprar remédios, pois a saúde de minha mãe sempre foi ruim, e geralmente um de nós tinha de ficar em casa para cuidar dela.

Nossos dias eram gastos em conseguir comida suficiente para nos alimentarmos, e era isso que estava ocupando minha mente. Eu sabia que era um pedinte melhor do que meu pai. Ele ficaria angustiado se descobrisse que, algumas vezes, recorri à mendicância para termos pão. Mas eu já fizera isso antes, tirando vantagem do facto de que parecia muito mais jovem do que realmente era. Quando nenhum de nós dois conseguia trabalho, eu me aconchegava num vão de porta até avistar alguma señorita rica se aproximando, então choramingava de modo patético. Entretanto, ao me sentar debaixo de uma árvore na praça do lado de fora da igreja, naquele abafado dia de verão, tinha esperanças de que meu pai fosse bem sucedido. Ao sair naquela manhã, ele me pedira que cuidasse de minha mãe, mas eu lhe desobedeci. Minha mãe tinha caído no sono, e segui meu pai enquanto ele ia atrás da moça ricamente vestida e de seu acompanhante. Calculei, como imaginei que ele o fez, que, se alguém como ela estava andando por essa área, só podia ter um destino. Devia estar indo ao santuário da Virgem Maria, que ficava no interior da igreja sobre o rochedo onde se podia contemplar o mar. E, se essa moça ia visitar uma igreja num dia não reservado à prática religiosa, então o mais provável era que tivesse uma tendência à piedade. Parecia ter a minha idade, com o mais lindo cabelo negro comprido preso em tranças e cachos por refinados pentes de casco de tartaruga. De vez em quando, o jovem nobre que a acompanhava virava-se para sorrir para ela e estender a mão para tocar-lhe o cabelo. Ela parecia uma boa moça, o rosto coberto apropriadamente por um véu, amável e devota. Tinha vindo a esta parte pobre da cidade para visitar o santuário, portanto isso devia significar que buscava algum favor especial, que tinha uma contricção ou uma súplica. Pensei, ela vai ouvir meu pai, do mesmo modo como espera que seu Deus a ouça. Eu estava errado». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,