«(…) A Revolução Portuguesa tomara-se um marco essencial para a compreensão dos grandes acontecimentos políticos mundiais da segunda metade do século XX, se bem que os políticos portugueses, que pouco tinham feito para que o 25 de Abril acontecesse, também não a soubessem promover, nem conseguissem dela tirar os louros que, por direito próprio, Portugal merecia. A transformação pacífica de Portugal num país livre e democrático foi um acontecimento não só inédito como exemplar, que viria a contribuir de forma absolutamente decisiva para a falência de inúmeros regimes totalitários em África, na América Latina e no próprio Leste Europeu e para um desanuviamento da tensão nas relações internacionais. A descolonização total do Continente Africano e os processos de democratização na Península Ibérica e na América Latina seriam o primeiro resultado da Revolução de Abril. O fim do apartheid e das ditaduras comunistas no Leste Europeu, pela via do diálogo e do pluripartidarismo, seriam também consequência da vitória das forças democráticas, primeiro em Portugal, depois, como reflexo dessa vitória, encontrariam força suficiente no seio da Internacional Socialista e no seio da NATO para rejeitar soluções de submissão unilateral nos chamados diálogos Leste Oeste e Norte Sul. Na base da força moral das forças democráticas, perante os graves conflitos entre o Leste e o Oeste e na escolha da via para a libertação dos Povos, nos anos 80, estaria sempre presente o exemplo português a que André Malraux chamaria a primeira vitória dos mencheviques sobre os bolcheviques. Bastaria referir, a este propósito, a situação de ruptura a que quase se chegou no seio da NATO por causa do regime sandinista na Nicarágua, sobre as propostas conducentes a um processo de desarmamento unilateral na Europa Ocidental e sobre um eventual apoio europeu a formas de luta armada a conduzir por países da Linha da Frente na África Austral, como forma de pôr fim ao regime do apartheid na África do Sul. Seria o exemplo da moderação da vitória dos mencheviques em Portugal que, na maior parte dos casos, mesmo quando a revolução portuguesa já parecia esquecida, cimentaria as decisões de bom senso que acabariam por prevalecer e moderaria os ímpetos revanchistas dos republicanos norte-americanos e os ataques de pacifismo serôdio de alguns socialistas europeus. Portugal esteve no epicentro de uma grande ameaça à paz tendo a solidariedade internacional, que nos faltou durante tantos anos, finalmente funcionado. Entre as várias opções que se colocariam aos capitães de Abril e as várias receitas preconizadas para Portugal prevaleceria o bom senso. Mas os partidos políticos e seus principais dirigentes rapidamente desperdiçariam este enorme património, em lutas intestinas e com vaidades provincianas. Hoje, visto de fora para dentro, Portugal regressou ao seu estatuto de país insignificante e receptor. Não foram conseguidos os grandes objectivos da Revolução de Abril e o País encontra-se entre a Europa e a mediocridade. Parece que o povo português não consegue libertar-se do fatalismo da I República. Este meu livro de memórias, assim o espero, é também uma contribuição contra esse fatalismo.
O chamado caso do fax
de Macau ou caso Ernaudio dar-me-ia o último
argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito, em nada
diferente dos conflitos que devassam o interior dos partidos políticos
portugueses e que se prendem com situações de poder; a propósito de um
financiamento político relativamente insignificante e em nada, a não ser no
montante, diferente dos que têm sido feitos ao longo dos últimos vinte anos a
partidos políticos e organizações afins, confundiu-se a árvore com a floresta e
iniciou-se a investigação à corrupção em Portugal de tal forma que, ao
contrário do que tem acontecido noutros países europeus, se inviabilizaria o
conhecimento da verdade e, como tal, o combate à corrupção. Em vez de se optar
por um esclarecimento idóneo e completo, a que os Portugueses têm direito,
sobre o estado da Nação em matéria de tráfico de influências e de corrupção,
cortando o mal pela raiz ou, caso se verificasse que a verdade poderia ser
fatal, a Assembleia da República em acto público entendesse fazer um acto de
contrição para bem da democracia, criando moratórias e regras novas, o
Ministério Público parece ter assumido a responsabilidade de definir o
interesse nacional. Produzindo uma acusação sem provas numa total inversão de
valores e, mesmo admitindo a convicção do investigador em relação a um crime
que não existiu, ignorando a máxima de Séneca: quem, podendo, não manda que
o delito se não faça, manda que se faça.
Não há Democracia sem a
participação dos cidadãos na vida do seu país. Escolheu-se definir, em
Portugal, que o enfâse dessa participação se faça através de partidos políticos.
Mas faltam ainda definir regras estritas sobre a democracia interna nos partidos
que os impossibilite de se transformarem, como tem vindo a acontecer em Portugal,
em aparelhos burocráticos fechados que impedem essa mesma participação». In
Rui Mateus, Contos Proibidos, 1996, Publicações Dom Quixote, 1996, ISBN
972-201-316-5.
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JDACT, Rui Mateus, Conhecimento, Política,