quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O Castelo. Luis Zueco. «Eneca não dizia palava, limitava-se a seguir a mãe, que a conduzia, guiada pela mão. A mulher de cabelos dourados…»




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Castelo de Xabier. Novembro do ano de 1027

«(…) Que fazeis aqui? Voltai para cima!, gritou um deles. Foram as suas últimas palavras, pois uma flecha arrancou-lhe um olho da órbita, salpicando o rosto de Eneca. A mãe agarrou-a com força e pegou numa das tochas que pendiam dos muros. Decidida, continuou a descer a escadaria seguinte, que acedia à adega da torre, deixando os restantes três soldados a rezar em voz alta, cientes de que em breve veriam o Senhor. Uma vez lá em baixo, Iguazel iluminou a divisão e prosseguiu até ao extremo mais afastado. Mãe, ajudai-me. Entre ambas, deslocaram sacos de trigo, deixando ver um alçapão no solo. Rápido! Abriu-o e pôs a filha lá dentro, ao mesmo tempo que, com o pano da saia, limpava o sangue que lhe salpicara o rosto. Eu não vou. A avó de Eneca afastou-se delas. Que dizeis, mãe? Vamos! Não. Ide! Depressa! Eu escondo novamente o alçapão, assim tereis mais tempo para fugir. Nada disso. E agarrou-a pelo pulso. Sou demasiado velha para me arrastar por esse túnel e correr em campo aberto, disse ela com voz serena, enquanto se libertava da mão que a retinha. Salva Eneca e deixa esta velha ser útil pela última vez. Concede-me esse desejo. Fitou-a com as lágrimas a inundar-lhe a face. Abraçaram-se como não faziam havia tanto tempo, que nenhuma delas se recordava, cientes de que não voltariam a ver-se. Como adeus, deixaram o último olhar. O alçapão fechou-se atrás delas e avançaram por um estreito túnel, húmido e frio, de ar putrefacto e com vermes e insectos a rastejar pelas paredes enegrecidas. Nalguns locais tinham de se ajoelhar e gatinhar. O espaço assemelhava-se às tocas de um dos animais que viviam no bosque. Era difícil saber onde acabava, o que parecia certo era que havia alguma inclinação e isso facilitava a marcha. O solo estava cada vez mais enlameado, os pés afundavam-se irremediavelmente, tornando cada passo mais difícil do que o anterior. Eneca não dizia palava, limitava-se a seguir a mãe, que a conduzia, guiada pela mão. A mulher de cabelos dourados não queria nem imaginar o que lhes aconteceria se a tocha que levava se apagasse e, pior ainda, o que encontrariam à saída daquele túnel.

Para sua desgraça, ela, sim, adivinhava a sorte dos que haviam ficado na torre, entre eles, a mãe e o marido, o tenente da fortaleza. Tentava não pensar nisso: a filha, era agora o mais importante. Finalmente encontraram ar puro e, pouco depois, escondido entre um emaranhado de ramos de arbustos, o acesso ao rio. Eneca não saía do assombro, ainda não entendia como haviam conseguido chegar ali. A ela, que tanto gostava de brincar na água, não lhe custou reconhecer aquele troço e maravilhou-se com a ideia de poder entrar e sair directamente da torre para o rio sem ser vista. Sem ter de passar pela casa do ferreiro nem pela da velha sem dentes que estava sempre a falar com os porcos do curral. Que pena não o ter descoberto antes. Não digas nada, ainda não estamos a salvo, ordenou-lhe a mãe, levando o indicador aos lábios. Espera aqui por mim.

Iguazel avançou alguns passos e espreitou, procurando a torre, que, por aquela altura, era já, pasto das chamas. Pensou no marido, que estaria a defender as ameias. Na mãe, que escondera de novo o alçapão e que depois se teria ocultado entre os víveres. Recordou também os soldados, que teriam feito os possíveis para repelir o ataque. Igual sorte teriam sofrido os aldeãos, só uns quantos haviam conseguido fugir para as montanhas, onde seriam presa fácil caso os perseguissem. Quando as lágrimas caíam da claridade dos seus olhos, ouviu um ruído próximo, o relincho de um cavalo». In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

JDACT, O Castelo, História, Século XI, Idade Média,