«(…) Calai-vos! Calai-vos! Não gostais de mim, os meus sentimentos não vos interessam. Estais obcecada com a vossa Espanha. Dou-vos uma última oportunidade de provar que tendes um coração dentro desse vosso corpo. Eis aqui uma carta do meu pequeno Carlos: quero que a minha mãe venha para casa, porque o meu pai está muito só sem ela. As princesas Leonor e Isabel, minhas irmãs, enviam mil beijos à sua querida mãe. Já tinha lido essa carta, Joana. Filha, pensei que tinhas mais senso e não te deixasses enganar tão facilmente. Não vês aqui a mão do conspirador? A carta termina..., por favor, perdoai a descortesia de não ter sido eu próprio a escrever. São estas as ternas lamúrias do teu filho de quatro anos? Não te iludas. São as malignas maquinações do teu amado Felipe e dos seus conselheiros. Joana avançou para a mãe como se quisesse bater nela, gritando: odeio-vos! Isabel levantou-se e olhou-a profundamente nos olhos. Se não fosse pelo teu estado de espírito, não teria tolerado a forma como falaste hoje comigo. O teu pai vem ver-me em breve e serão, então, feitos todos os preparativos para a tua viagem para Flandres. O infante Fernando ficará connosco. Mais um dos vossos esquemas? Que ele venha a herdar? Chega, Joana! Estou cansada disto. Trouxe Zayda comigo. Ela vai preparar um banho perfumado para ti e livrar-te dessas roupas malcheirosas. Talvez consiga fazer com que fiques com o aspecto e o odor de uma princesa, embora não te comportes como tal.
Joana atravessou um laranjal, passando dos jardins ensolarados para um corredor desconhecido. Por aqui, Senhora! Porque não, Maria?, indagou Joana, indiferente quanto ao sítio onde a levavam os seus passos. O seu mundo era de felicidade, uma felicidade infinita, desde o regresso a Bruxelas em Maio. Durante a ausência de um ano, parecia que Felipe tinha esquecido a sua beleza e vivacidade e ficou totalmente intoxicado pelo encanto da esposa. Chamava-lhe a sua jovem noiva e minha Joana. O seu maravilhoso marido, belo como um Deus, a amava. Os seus dias eram uma euforia de cavalheirismo romântico. Havia torneios, onde Felipe usava as suas cores, amarelo e verde, e derrubava sempre o cavaleiro adversário. Os banquetes e os bailes eram melhores do que se lembrava e as noites passadas a dois, de uma paixão e êxtase sem rival. De súbito, imobilizou-se. Vai!, ordenou num sussurro. Ouvira vozes e uma suspeita incómoda atravessou-a, uma suspeita gélida e simultaneamente escaldante que recusava nomear. Assim que se achou sozinha, avançou na ponta dos pés e escutou de novo junto de uma porta próxima. Era a voz de Felipe. Aproximou-se mais, encostando a cabeça aos painéis. Há razões de Estado que exigem que eu esteja com ela, o vosso tio deve ter-vos explicado. Mas Beatrice, minha querida Beatrice, mesmo assim fui um louco ao negligenciar-vos tão cruelmente. Por favor, dizei que me perdoais. Perdoo-vos, Senhor. Senhor, não. Dizei: perdoo-vos, Felipe. Perdoo-vos, Felipe.
Joana tapou os
ouvidos e virou-se para escapar à traição pungente daquelas palavras que lhe
pertenciam, palavras ditas quando ela e Felipe se haviam encontrado pela primeira
vez. Devia ter-se ido embora, mas era impossível. Também não podia escancarar a
porta para pôr fim àquela infâmia. Havia algo que a levava, que a obrigava a
ouvir mais. ... amanhã à noite, sem falta. E então já saberei dos preparativos
finais da nossa semana de caça e onde vamos ficar. Prometeis? A minha palavra
de honra. Santo Deus, se nos tivéssemos conhecido há anos, como nossas vidas
seriam diferentes. É tolice olhar para o passado, Felipe, para o que não pode
ser alterado. Vamos é ficar gratos ao meu tio Carlos, o príncipe Chimay, por me
ter trazido aqui quando o fez. Fez-se um silêncio. Não havia dúvida de que
haviam caído nos braços um do outro.
Joana deixou-se abater de encontro à parede. Era a sobrinha de Chimay! Porque a haviam chamado? Por quem? Quando? Quantos sabiam daquilo e há quanto tempo? Porque é que ninguém lhe contara? Que havia de fazer? Sentiu-se enjoada. O seu mundo, aquele mundo glorioso e feliz despenhara-se, despedaçado para sempre. Sem saber bem como, afastou-se da parede e endireitou-se. Como num transe, desceu o corredor com a voz excitada de Felipe nos ouvidos, a bela voz risonha falando de uma nota que iria esconder algures no jardim para a querida Beatrice. Uma vontade de ferro fez com que Joana passasse pelos cortesãos e a sua má-língua ofensiva; chegou aos seus aposentos, onde se deixou cair de joelhos, em soluços. Zayda correu para o seu lado. Minha Senhora, o que aconteceu? Pergunta à Maria. Esta não respondeu. Conta-lhe, Maria, deves saber, provavelmente há já algum tempo, prosseguiu Joana, balançando-se para a frente e para trás tal era o seu desgosto. Não tinha a certeza. Era melhor não dizer nada se não tinha a certeza. E avisaram-me que não o fizesse. Quem? Madame Halewyn. Portanto, eram a Halewyn e o Chimay. Quem mais entraria na conspiração? E seguiste as instruções dela, traindo-me ainda mais? Minha Senhora, peço-vos humildemente perdão, ela me assegurou de que não era nada, que o caso acabaria em breve, que saber vos faria mais mal que bem. Que mentirosa, isso não é nenhum caso. Felipe está apaixonado, ama-a, prefere ela a mim! Ouvi-o dizer! Joana uivava. Não, não, não, Senhora, não pode ser. Lamento tanto. Quem é ela? Uma baronesa viúva. Chimay trouxe-a para cá para se recuperar da morte do marido faz alguns meses». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.
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