Paris, 3 de Junho de 1940
«(…) Falta pouco para vermos os panzers às voltas ao Arco do Triunfo, vaticinou a americana. A cabeleira ruiva dava-lhe uma aura original, mas era nos olhos castanhos brilhantes, e sobretudo no seu tom de voz imperativo, que morava a confiança de alguém que perorava como se possuísse elevada experiência militar, só porque estivera algumas semanas próxima de balas e de bombas. Melhor assim, pode ser que apareçam uns alemães giros! Os homens eram o tema preferido de Polly. Aos trinta e quatro anos, e já com um divórcio no currículo, especulava constantemente sobre as capacidades sexuais deles, mesmo dos feridos que transportava na ambulância, oferecendo aos ouvintes pérolas como: olha-me o enchumaço naquelas calças!; ou este não a levanta nem com uma roldana. A Carol, a cínica e lasciva americana lembrava algumas personagens femininas de Oscar Wilde. Com os franceses não me safo!, acrescentou Polly. Duas noites antes, atrelara-se a um Paul qualquer, que lhe parecera entusiasmante, no final de um jantar bem regado a tinto, mas que na véspera já descrevera como uma valente decepção, pois brindara-a com uma incómoda falta de vigor sexual, uma arreliante maldição que a americana generalizava agora a todos os machos gauleses. Estão tolhidos de medo, rien de rien! garantira. Uma pequena desilusão privada chegava-lhe para retirar conclusões tremendas sobre a masculinidade de um povo. Curiosamente, o inverso também era verdadeiro, pois Polly descrevia os holandeses como firmes, só porque dormira com dois durante as semanas em que soara a sirene nos Países Baixos. E tu, Carol, ainda és virgem?, perguntou de súbito. A surpresa não residia no tema, mas no objecto da curiosidade, pois Polly nunca se interessara pela minha prima. Sabia que nascera em Portugal, pois alguém lho tinha dito, mas só comentara que nunca fora a Lisboa, como se isso é que fosse relevante. Completamente egocêntrica, Polly colocava sempre um repetitivo eu na sua habitual cascata de frases. Eu isto, eu aquilo, eu estive lá, eu é que sei. Falava na sua intensa experiência de guerra, babando orgulho aventureiro; no divórcio trapalhão, embora o marido a tivesse deixado muito bem; ou nos muitos parceiros íntimos que tivera. Por isso, espantada com aquele interesse, Carol demorou a reagir, o que acabou por pagar com uma provocação desnecessária. Não tens a certeza?, gozou Polly. Tanta superioridade sexual espicaçou o orgulho da minha prima, que descreveu à americana a sua primeira vez, com um finalista chamado Yves, no Verão de 1939. Após uma festa, enfiara-se no quarto alugado do rapaz, mas desse dia supostamente épico da sua vida de mulher, apenas recordava detalhes laterais, como o cheiro acre das axilas de Yves ou um relógio de cuco pendurado na parede, onde um enervante pássaro de madeira abria de rompante uma portinhola. Ouvira três cucus à entrada e quatro à saída, sessenta minutos fora o tempo que estivera com Yves, que nunca mais vira, pois ele não regressara em Setembro. O actual chama-se Jean-Luc.
Saltou para o segundo capítulo da
sua vida amorosa sem pausa, não fosse Polly interrompê-la. Namorava desde Abril
com um jovem moreno, de cabelo encaracolado e pele esquálida. Uma vez por mês,
passavam a tarde juntos em casa dele, onde vivia sozinho, pois os pais tinham
partido para Lyon, a terra de origem». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu
dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
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