terça-feira, 25 de agosto de 2020

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Naquele dia, jurei vingança. Meu choque entorpecido diante da total e selvagem crueldade dos actos daquele dia foi substituído por um ódio venenoso»

Cortesia de wikipedia e jdact

Zarita

«(…) O rosto de meu pai se contraiu, e ele colocou as mãos sobre o rosto. Sua mãe..., começou, mas não conseguiu continuar. Soluços agitaram o seu corpo. Mãe? Minha respiração congelou nos pulmões. Mãe! Diga-me que nada aconteceu a ela. Por favor, pai. Diga-me que ela está viva. Ela está viva, confirmou ele, mas não por muito tempo. Ele hesitou, então gesticulou para o tenente. Já houve muitas mortes nesta casa por um dia. Pouparei a vida do rapaz, mas cuide para que ele seja mandado para onde eu nunca mais o veja. Meio decepcionados, os soldados largaram a corda, e o rapaz caiu no chão com um estrondo, onde permaneceu estremecendo, aturdido, mas vivo.

Estamos a caminho para nos juntarmos a navio aos exércitos da rainha Isabel de Castela e do rei Fernando de Aragão no cerco contra Granada, informou o tenente a meu pai. Entregarei este rato mendigo à primeira galé que encontrarmos no mar. Ele poderá servir como escravo até ao fim dos seus dias. O pai concordou com a cabeça, porém eu mal notei esse gesto. Passei apressadamente por ele e corri escada acima para o quarto da minha mãe. Minha tia Beatriz estava ajoelhada ao lado da cama segurando a sua mão. Eu soube então que minha mãe devia estar morrendo, pois minha tia era uma freira de convento que não deixava a clausura excepto em circunstâncias extremas. Afastara o véu de freira, de modo que pude ver como as suas feições se pareciam com as de minha mãe, embora minha tia fosse mais jovem. Falava com a irmã num tom de voz tranquilizador, dizendo-lhe que suas tribulações desta vida logo chegariam ao fim e que em breve encontraria o seu descanso e recompensa no céu. Não!, falei em voz alta. Não diga isso! Mãe não pode morrer. Mas pude ver que as suas faces e as suas órbitas haviam afundado, e que, para ela, cada respiração era um sofrimento.

O sacerdote local, o padre Andrés, que se encontrava de pé na extremidade da cama, tentou oferecer palavras de consolo, mas não fui apaziguada. Gritei para ele: eu fui ao santuário de Nossa Senhora das Dores para rezar e fazer uma oferenda para que tudo terminasse bem. Acendi uma vela e pedi que mãe se recuperasse após o parto. Mas não havia ninguém no céu me escutando. Fiquei com raiva do Deus dele, por ter ignorado meus apelos por misericórdia. Do que adiantou eu ter feito aquilo?, berrei para o sacerdote. Não adiantou de nada. Nada! O rosto do padre Andrés registou o choque provocado pelas minhas palavras, mas ele me falou amavelmente.

Não deve dizer essas coisas, Zarita. É errado questionar a vontade de Deus. Minha tia Beatriz disse: Zarita, minha menina, acalme-se. Sua mãe está indo embora. Deixe-a fazer isso em paz, com palavras tranquilas de amor da sua parte. Mas eu só conseguia pensar nas minhas próprias necessidades, minha própria dor. Joguei-me atravessada ao corpo de mãe na cama, derramei lágrimas e gritei: não me deixe, mãe! Mãe! Mãe! Não me deixe!

Saulo

Naquele dia, jurei vingança.

Meu choque entorpecido diante da total e selvagem crueldade dos actos daquele dia foi substituído por um ódio venenoso. Antes de os soldados amarrarem as minhas mãos e me arrastarem pelas ruas até ao cais, encarei friamente o rosto do homem que me tratou injustamente e jurei que jamais o esqueceria. Eu, Saulo, da cidade de Las Conchas, decidi que causaria a ruína de Dom Vicente Alonzo Carbazón. Derrubaria a árvore na qual ele enforcara meu pai. Dispersaria o seu gado e envenenaria seus poços. Incendiaria sua casa junto aos bens e à mobília de seu interior e os pisotearia até virarem pó. Eu destruiria a ele, sua mulher e todos os seus filhos.

Perto da meia-noite, no interior da igreja de Nossa Senhora das Dores, situada no alto de um rochedo que contemplava o mar Mediterrâneo, a vela acesa naquela manhã por Zarita del Vicente Alonzo de Carbazón tremeluziu e se apagou. Vinte minutos depois, a vida de sua mãe também se extinguiu. Deste modo, o simples acender de uma vela deu início a uma cadeia de eventos que levaria o desastre aos envolvidos nos incidentes daquele dia». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,