Zarita
«(…) O rosto de meu pai se
contraiu, e ele colocou as mãos sobre o rosto. Sua mãe..., começou, mas não
conseguiu continuar. Soluços agitaram o seu corpo. Mãe? Minha respiração
congelou nos pulmões. Mãe! Diga-me que nada aconteceu a ela. Por favor, pai.
Diga-me que ela está viva. Ela está viva, confirmou ele, mas não por muito
tempo. Ele hesitou, então gesticulou para o tenente. Já houve muitas mortes
nesta casa por um dia. Pouparei a vida do rapaz, mas cuide para que ele seja
mandado para onde eu nunca mais o veja. Meio decepcionados, os soldados
largaram a corda, e o rapaz caiu no chão com um estrondo, onde permaneceu
estremecendo, aturdido, mas vivo.
Estamos a caminho para nos
juntarmos a navio aos exércitos da rainha Isabel de Castela e do rei Fernando
de Aragão no cerco contra Granada, informou o tenente a meu pai. Entregarei
este rato mendigo à primeira galé que encontrarmos no mar. Ele poderá servir
como escravo até ao fim dos seus dias. O pai concordou com a cabeça, porém eu
mal notei esse gesto. Passei apressadamente por ele e corri escada acima para o
quarto da minha mãe. Minha tia Beatriz estava ajoelhada ao lado da cama
segurando a sua mão. Eu soube então que minha mãe devia estar morrendo, pois
minha tia era uma freira de convento que não deixava a clausura excepto em
circunstâncias extremas. Afastara o véu de freira, de modo que pude ver como as
suas feições se pareciam com as de minha mãe, embora minha tia fosse mais
jovem. Falava com a irmã num tom de voz tranquilizador, dizendo-lhe que suas
tribulações desta vida logo chegariam ao fim e que em breve encontraria o seu
descanso e recompensa no céu. Não!, falei em voz alta. Não diga isso! Mãe não
pode morrer. Mas pude ver que as suas faces e as suas órbitas haviam afundado,
e que, para ela, cada respiração era um sofrimento.
O sacerdote local, o padre Andrés,
que se encontrava de pé na extremidade da cama, tentou oferecer palavras de
consolo, mas não fui apaziguada. Gritei para ele: eu fui ao santuário de Nossa
Senhora das Dores para rezar e fazer uma oferenda para que tudo terminasse bem.
Acendi uma vela e pedi que mãe se recuperasse após o parto. Mas não havia ninguém
no céu me escutando. Fiquei com raiva do Deus dele, por ter ignorado meus
apelos por misericórdia. Do que adiantou eu ter feito aquilo?, berrei para o
sacerdote. Não adiantou de nada. Nada! O rosto do padre Andrés registou o
choque provocado pelas minhas palavras, mas ele me falou amavelmente.
Não deve dizer essas coisas,
Zarita. É errado questionar a vontade de Deus. Minha tia Beatriz disse: Zarita,
minha menina, acalme-se. Sua mãe está indo embora. Deixe-a fazer isso em paz,
com palavras tranquilas de amor da sua parte. Mas eu só conseguia pensar nas
minhas próprias necessidades, minha própria dor. Joguei-me atravessada ao corpo
de mãe na cama, derramei lágrimas e gritei: não me deixe, mãe! Mãe! Mãe! Não me
deixe!
Saulo
Naquele dia, jurei vingança.
Meu choque entorpecido diante da
total e selvagem crueldade dos actos daquele dia foi substituído por um ódio
venenoso. Antes de os soldados amarrarem as minhas mãos e me arrastarem pelas ruas
até ao cais, encarei friamente o rosto do homem que me tratou injustamente e
jurei que jamais o esqueceria. Eu, Saulo, da cidade de Las Conchas, decidi que
causaria a ruína de Dom Vicente Alonzo Carbazón. Derrubaria a árvore na qual
ele enforcara meu pai. Dispersaria o seu gado e envenenaria seus poços.
Incendiaria sua casa junto aos bens e à mobília de seu interior e os pisotearia
até virarem pó. Eu destruiria a ele, sua mulher e todos os seus filhos.
Perto da meia-noite, no interior
da igreja de Nossa Senhora das Dores, situada no alto de um rochedo que
contemplava o mar Mediterrâneo, a vela acesa naquela manhã por Zarita del
Vicente Alonzo de Carbazón tremeluziu e se apagou. Vinte minutos depois, a vida
de sua mãe também se extinguiu. Deste modo, o simples acender de uma vela deu
início a uma cadeia de eventos que levaria o desastre aos envolvidos nos
incidentes daquele dia». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,