sábado, 22 de agosto de 2020

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Você desgraçou nossa família. Papá, choramingou a moça, angustiada. Ouça-me. Esse homem não merece morrer. Mas era tarde demais»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) A porta lateral da igreja abriu-se com um estrondo, e meu pai saiu correndo. Olhou de relance para os fundos da edificação; a parede do rochedo fechava a parte de trás, sem qualquer caminho visível. Ele virou e correu ao longo da lateral da igreja em direcção à frente desta. Imediatamente, pressenti o perigo. Levantei-me. A porta da igreja abriu-se novamente, e o jovem nobre que acompanhara a moça apareceu, seguido pela própria moça, bem mais atrás, as barras das saias apertadas nas mãos, correndo. O jovem perseguia meu pai, gritando loucamente. Assassino! Ladrão! Criminoso! Havia pouca gente por ali, mas quem estava na praça parou para olhar. Fiz um aceno com a mão. Achei que meu pai me tinha visto, mas ele se afastou com uma guinada para a direita, na direcção de uma escada que descia para o mar. Meu coração batia forte no peito. Não! Aquele caminho levava à praia, e a água barraria seu caminho. No primeiro degrau, o jovem o alcançou e arremeteu com sua adaga. Ramón!, gritou a moça. Tenha cuidado! Meu pai não carregava arma alguma. Empurrou o homem chamado Ramón e o derrubou. Mas, ao fazer isso, ele mesmo caiu para trás e rolou pela escada. Juntamente aos outros espectadores, corri adiante para ver o que estava acontecendo. Abaixo de nós, meu pai, com dificuldade, se punha de pé. Mais alguns segundos e ele teria escapado; poderia ter encontrado outra passagem ou caminho pelo rochedo para fugir. Mas então um grupo de soldados surgiu marchando pelo quebra-mar. Do topo da escada, Ramón, seu perseguidor, gritou para o tenente no comando: prenda esse homem! Ele acabou de atacar uma moça no interior da igreja e tentou matar-me! Os soldados avançaram atrás do meu pai, agarraram-no e, com muitos socos e pontapés, levaram-no escada acima para enfrentar Ramón. Levem-no ao pai desta moça! O rosto do jovem nobre estava contorcido de raiva. Ele se chama Dom Vicente Alonso Carbazón e é o magistrado local!

E, assim, meu pai foi arrastado pelas ruas até à casa do magistrado e lançado ao chão de sua propriedade. Corri atrás deles, incapaz de pensar claramente sobre o que estava acontecendo, tão depressa estavam se desenrolando esses terríveis acontecimentos. No caminho, mais gente se reuniu atrás dos soldados para assistir ao espectáculo. Todos agora se aglomeravam diante do portão aberto. A moça abraçou o pai ao chegar à porta de casa. Ela fez menção de erguer o véu, mas ele segurou sua mão. Ele estava sem o casaco; e a gola da camisa, aberta. O cabelo estava desgrenhado, e seu corpo tremia enquanto falava. Que barulho é esse, exigiu raivosamente, que me perturba no momento em que mais preciso de paz? Ergueu a mão. Silêncio, rugiu. Então apontou para o jovem nobre. Você, Ramón Salazar, diga-me o que está acontecendo aqui. Senhor, Dom Vicente..., este mendigo atacou sua filha na igreja do modo mais cruel. E, quando fui impedi-lo, ele tentou matar-me. Dom Vicente deu um passo adiante e agrediu meu pai com um soco no rosto. Meu pai caiu no chão, cuspindo dentes e sangue na terra vermelha do pátio. Senhor, meu pai tentou falar, o mais nobre Dom... Dom Vicente desferiu um pontapé na sua cabeça. Silêncio, seu vira-lata, vociferou. Se não tivesse assuntos mais urgentes a tratar, eu o julgaria aqui mesmo e faria cumprir imediatamente a sua sentença. Estamos em estado de guerra, lembrou o tenente que comandava os soldados. A rainha Isabel de Castela e seu marido, o rei Fernando de Aragão, têm afirmado que não tolerarão qualquer agitação civil enquanto lutam para reunificar todas as nossas províncias para que a Espanha se torne um país novamente. Um magistrado do município pode mandar que um traidor seja executado por um oficial militar sem um julgamento formal. E quem ofende, numa igreja, um homem ou uma mulher da nobreza deve ser condenado por traição. Apontou para uma árvore próxima.

Podemos enforcá-lo agora mesmo e encerrar aqui esse assunto. Faça isso, ordenou Dom Vicente. Deu meia-volta e se preparou para entrar na sua casa. E livre-se dessa plebe no meu portão. Pai!, gritei, quando os soldados começaram a fechar as pesadas portas de madeira da propriedade. Tentei forçar a entrada, mas eles fizeram que todos recuassem agredindo-nos violentamente com a lateral da espada. Soquei a superfície de madeira; esta não cedeu. Quando ouvi o trinco ser fechado, corri em volta do muro até encontrar um local onde houvesse um apoio para o pé. Recuei alguns passos, então me lancei contra essa parte do muro e o escalei com unhas e pés até alcançar o topo. Agora conseguia ver o pátio em baixo. Um cavalariço dos estábulos recebera ordem de apanhar uma corda, e esta foi arremessada por cima da parte superior de uma frondosa árvore. A boca do meu pai estava escancarada de terror e incredulidade. Sangue escorria dos seus lábios. Papá! A moça puxou a manga da roupa do pai. Seu papá, o magistrado, livrou-se dela com um empurrão. Vá para dentro, mandou. Você desgraçou nossa família. Papá, choramingou a moça, angustiada. Ouça-me. Esse homem não merece morrer. Mas era tarde demais». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,