«História mágica ou filosófica, romance histórico ou de formação, narrativa sobre o tempo ou viagem interior de um jovem alemão honrado e ávido de experiências, este romance envolve e enreda o leitor em teias mágicas que não mais o libertarão, entre a sátira e a seriedade, o humor e a ironia, a luz e o niilismo, numa sinfonia contra-pontística em que liberalismo e conservadorismo, decadência e sublimação, doença e saúde, espírito e natureza, morte e vida, honra e volúpia se sucedem num torvelinho que só a Primeira Guerra Mundial conseguirá dissipar. Quando as fundações da Terra e da montanha mágica começam a tremer, quando o mundo hermético feito de tédio, torpor e exasperação começa a abalar, por acção do trovão e do enxofre, das baionetas e dos canhões, é que o arganaz adormecido esfrega os olhos e começa a endireitar-se, saindo da sua tenaz hibernação, expulso do seu reino e dos seus sonhos, salvo e liberto, depois de quebrado tão longo e mágico encanto». In Sinopse
«Um jovem singelo viajava, em pleno Verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita, por três semanas. Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa, demasiado longa, na verdade, para uma estada tão curta. É preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até a beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por sobre abismos outrora considerados insondáveis. A partir dali torna-se demorada a viagem que até esse ponto se realizava rapidamente, em linha quase recta. Há delongas e complicações. Na localidade de Rorschach, já em território suíço, voltamos a confiar-nos à viação férrea; mas, por enquanto não se progride além de Landquart, pequena estação alpina, onde se precisa fazer baldeação. É um comboio espera numa paisagem varrida pelo vento e desprovida de encantos. No momento em que se põe em movimento a locomotiva de pequeno porte, mas evidentemente de extraordinária força de tracção, começa a parte deveras aventurosa da viagem, uma escalada brusca e penosa que parece não ter fim. A estação de Landquart acha-se situada a uma altura relativamente moderada. A partir dela, porém, entra-se na própria montanha, por uma estrada rochosa, áspera, angustiante.
Hans
Castorp, eis o nome do referido jovem, estava sozinho num pequeno compartimento
forrado de cinza, onde também se encontravam a sua maleta de couro de crocodilo
(presente de seu tio e pai de criação, o cônsul Tienappel, cujo nome convém
mencionar desde já), bem como o casaco de Inverno, a balouçar suspenso num
gancho, e o cobertor de viagem enrolado. Estava sentado junto à janela aberta,
e como a tarde se vinha tornando cada vez mais fresca, levantara rapaz mimado e
franzino que era a gola do sobretudo de Verão, forrado de seda e de corte amplo
e moderno. A seu lado, no assento, jazia uma brochura intitulada Ocean Steamships,
na qual Hans Castorp, durante as primeiras horas de viagem, de vez em quando lançara
um olhar; agora, porém, o livro permanecia ali abandonado, enquanto o hálito da
locomotiva arquejante, ao entrar pela janela, salpicava-lhe a capa de
partículas de carvão. Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um
jovem que ainda não criou raízes firmes na vida do seu mundo quotidiano, de
tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projectos;
apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava, enquanto um fiacre o levava
à estação. O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e o seu
lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo;
produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas
que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o
tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas
relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar,
num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que
o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa
uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser
mais rápido.
Hans Castorp ia passando por
experiências análogas. Não tivera a intenção de levar essa viagem muito a sério
e de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquidá-la depressa, porque tinha
que ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar a sua
vida anterior exactamente no ponto em que a abandonara por um instante. Ainda
ontem se movimentara dentro do costumeiro círculo de ideias; ocupara-se com os
acontecimentos mais recentes, o seu exame final, e com o futuro imediato, sua
entrada na vida prática, como funcionário da firma Tunder & Wilms
(Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras). Com o máximo de impaciência que
seu temperamento lhe permitia, procurara olhar para além das semanas vindouras.
Nesse momento, porém, parecia-lhe que as circunstâncias exigiam dele plena
atenção, não lhe sendo licito menosprezá-las». In Thomas Mann, Montanha Mágica,
1924, Edições Dom Quixote, 2009, ISBN 978-972-203-732-7.
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