1229. 154 de Janeiro. Basílica Minor de Seligenstadt
«(…) Ouviu-se um ruído, um arrastar de sandálias no corredor
próximo. Konrad ergueu os olhos do papel e apurou o ouvido até que um homem
apareceu na soleira. Era um franciscano com uma larga tonsura rodeada de
cabelos hirsutos, o rosto iluminado por dois olhos de asceta. Meu amigo Gerhard
von Lützelkolb! Von Marburg pôs-se de pé, abrindo os braços. Estava agora mesmo
me perguntando por que demorava tanto. O frade fez uma leve reverência e
inspirou profundamente, várias vezes. Viera correndo. Fui retido, magister. Perdoe-me. Magister. Era assim que
Konrad era chamado nos últimos dois anos, desde quando o Santo Padre o havia
incumbido de uma missão de grande importância, sinal indubitável de predilecção,
mas também um fardo pesadíssimo. A ninguém antes tinha sido conferido o encargo
de investigar a heresia com a finalidade declarada de extirpá-la a todo custo.
Esse poder o coloc ava acima de qualquer bispo, prior ou abade e suscitava em
todos um temor reverente. Gerhard von Lützelkolb olhou em volta,
aconchegando-se no manto de lã que trazia sobre o hábito. Parecia buscar uma
fonte de calor, que, no entanto, não encontrou. Estou ficando gelado neste
quarto. O gelo purifica, retrucou o religioso, em tom de censura. O frade
mordeu os lábios. O rigor de Von Marburg era bem conhecido. Bem, magister...
O que ordena? Konrad lhe fez sinal para esperar. Deu uma última olhada nas
cartas e lacrou-as. Devem ser enviadas imediatamente, recomendou, entregando-as
ao franciscano. Os mensageiros estão prontos para partir. Gerhard sopesou os
dois rolos, hesitante. As mãos lhe tremiam e uma luz estranha se projectava de
seus olhos. Konrad observou-o atentamente. Não deixava escapar nada, nem o
mínimo detalhe. Alguma coisa o perturba? Antes de responder, o franciscano
emitiu uma espécie de grunhido. Aconteceu uma coisa terrível, magister.
Explique-se. Tem a ver com o clérigo Wilfridus, o herege que o senhor acabou de
interrogar. O que foi? Ordenei que permanecesse na cela até ser enforcado. Isso
não será necessário. A boca de Gerhard se contorceu. Ele já está morto. Konrad
cerrou os punhos contra o peito. Mas como... Os guardas o encontraram todo
queimado. Por isso me atrasei. Queimaduras horríveis, causadas por..., alguma coisa cravada
nas suas costas. A cela está tomada pelo cheiro de enxofre. Ninguém viu nada? Não,
mas... Como isso teria acontecido? Era impossível entrar naquela cela. A janela
é estreita demais para dar passagem a... Um homem? Konrad pousou-lhe as
mãos nos ombros, o rosto descontraído por um sorriso. Ali estava, pensou, o tão
esperado sinal. Antes de falar, saboreou as palavras. Não receie dar voz aos
seus pensamentos, meu amigo. À noite, o Maligno cavalga por estas terras. Gerhard
fez o sinal da cruz, como que para se proteger de uma maldição. Vamos,
encaminhe logo estas cartas, apressou-o Konrad. E ore ao Senhor para que nos dê
forças. Em seguida, apesar do frio intenso, Konrad aproximou-se de novo da
janela e abriu-a. Precisava olhar para fora, procurar na escuridão. O vento
entrou assobiando no quarto, apagando a vela. E as trevas da noite, densas como
breu, invadiram tudo.
O Signo do Sagitário. Paris. 26 de Fevereiro
«Nem o diabo se deve temer. Ele é, na
verdade, o Sagitário armado de setas inflamadas que, a qualquer momento,
infunde o terror nos corações do gênero humano». In Zenone di Verona
Suger olhou de novo para trás. Alguém o seguia. Uma figura imponente, envolta num manto esfarrapado. Ele a notara havia poucos minutos, enquanto descia da colina de Sainte-Geneviève em direcção à Cité, e, temendo uma agressão, tinha apressado o passo. Além daquele estranho, não havia nada na rua, excepto ratos e lixo. Sujeira por todo lado, em grande parte vestígio dos festejos do Carnaval. Ele cobriu a cabeça com o capuz para se proteger do frio e, após alguns passos, olhou de novo para trás. O homem do manto esfarrapado se aproximava cada vez mais... Antes o abade de Saint-Victor não o tivesse chamado! Suger era magister medicinae no Studium, mas não rico o suficiente para se recusar a uma visita depois do anoitecer, sobretudo quando os pacientes pagavam bem. Além da infusão de segurelha e do cataplasma para os pés inchados, o ancião exigia uma boa dose de paciência. Suger detestava as queixas do velho e, todas as vezes que atendia a pessoas assim, lamentava não ter escolhido a profissão do pai, fabricante de vitrais de igrejas por quarenta anos». In Marcello Simoni, O Labirinto no Fim do Mundo, 2013, Editora Jangada, 2015, ISBN 978-855-539-026-5.
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