«(…) Ao longo do século XIX, cada
vez mais o Vaticano ia-se tornando anacrónico. Os Estados Papais se estendiam
de Roma a Ancona e até Bolonha e Ferrara, e o papa governava qual um potentado
medieval. A tortura constituía prática regular nas mãos dos anónimos guardas da
Inquisição (maldita)
nas
suas prisões secretas. Os condenados nos tribunais pontifícios viravam
remadores nos galeões ou eram exilados, presos ou executados. Um patíbulo
aparentando bastante uso ocupava o centro da praça de todas as comunidades. Por
todo o lado espreitavam espiões, e a repressão era a regra; a modernidade vinha
sendo mantida ao largo, até mesmo as estradas de ferro foram proibidas pelo
papa, que temia que as viagens, bem como a comunicação entre os indivíduos,
causassem danos à religião. Tudo isso acontecia contra o pano de fundo de uma
Europa onde a norma era pressionar por mudanças sociais sob a forma de
movimentos libertários contra o poder despótico e de encorajamento do governo parlamentarista.
A despeito da ignorância
proposital, o mundo exterior ia adentrando as fronteiras fragilizadas dos
domínios papais. As mudanças começavam a parecer inevitáveis. A filosofia
política democrática, uma crescente consciência social e a florescente crítica
aos textos bíblicos e suas incoerências faziam as convicções religiosas
baquearem sob a pressão. Além disso, para horror dos católicos conservadores, o
poder político do papa também estava directamente ameaçado. Tratava-se de um
problema real: em 1859, logo depois de uma guerra entre a Áustria e a França,
na qual as forças católicas dos Habsburgos sofreram uma derrota, a grande
maioria das terras papais foi anexada ao recém-criado reino da Itália. O papa
Pio IX, sumariamente rebaixado pelos acontecimentos, governava agora apenas Roma
e um fragmento do campo à sua volta. E as coisas pioraram: em 21 de Setembro de
1870, até mesmo esse pequeno património lhe foi tomado pelos soldados
italianos. Ao papa restou tão-somente o enclave murado da Cidade do Vaticano,
de onde até hoje seus sucessores continuam a governar.
Pouco antes da perda de Roma, o
papa, num aparente gesto de desespero, convocara um Concilio Geral de Bispos
para sustentar o seu poder. No entanto, ao reunir esse Concilio, o papa
reconhecia implicitamente as limitações de tal poder. A questão de quem
segurava as rédeas há muito constituía uma ferida aberta no Vaticano. A incómoda
verdade era que a legitimidade do papa não derivava do apóstolo são Pedro, dois
mil anos atrás, como ele afirmava, mas de uma fonte bem mais mundana e terrena:
um Concilio de Bispos que se reunira em Constance no início do século XV, época
em que havia três papas, uma trindade de pontífices unidos unicamente por um
desprezo mútuo, todos afirmando simultaneamente possuir autoridade suprema
sobre a Igreja. Essa situação ridícula fora resolvida pelos bispos, que
declararam, declaração esta reconhecida, ser detentores de autoridade legítima.
Dali em diante, os papas mantiveram a autoridade graças aos bispos. Consequentemente,
os primeiros dependiam, sempre que desejassem empreender uma mudança
significativa, da aprovação dos últimos.
O
papa Pio IX foi, porém, o que pretendeu fazer a maior das mudanças: estava
decidido a ser declarado infalível, atribuindo-se assim um poder inédito sobre
todos os fiéis. Sabia, contudo, que seria obrigado a usar de astúcia para
alcançar tal objectivo. Por esse motivo, o Concilio Vaticano I foi convocado no
final de 1869. A sua verdadeira finalidade foi mantida em segredo por um
pequeno grupo de homens poderosos que incluía três cardeais, todos eles membros
da Inquisição (maldita). Não houve
qualquer menção à infalibilidade papal em nenhum dos documentos que abordavam
os objectivos e as directrizes do concílio. Enquanto isso, os bispos se
reuniram e se viram sujeitos a tácticas coercitivas. As votações não eram
secretas, e o preço da crítica logo ficou evidente: a perda dos estipêndios do
Vaticano era o mínimo que um bispo dissidente podia esperar». In
Michael Baigent, Os Manuscritos de Jesus, Editora Nova Fronteira, 2006, ISBN
978-852-091-898-2.
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