terça-feira, 1 de março de 2011

Fernando Pessoa: Os Grandes Trechos. Parte VIII. Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos I

Cortesia de triplov

Com a devida vénia a Richard Zenith na edição do Livro do Desassossego, obra essencial de Fernando Pessoa, publico um dos Grandes Trechos.

Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos I
«Raciocínio, tudo será fácil porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, pajem, namoro a filha dele, cuja alma sou, à janela da sua casa.
Limitam-me, é claro, os meus conhecimentos. Não posso criar um matemático... Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais. Mas não vale a pena. Basto-me assim.
Pulverização da personalidade: não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos, nem o meu carácter... Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substituí os meus sonhos a mim próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.

Cortesia de dailychapter7wordpress
Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar.
Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.
O esforço é inútil, mas entretém. o raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que nunca chegue; sem querer resolver um problema, que veja (que) nunca resolvo. Posso amar sem me recusarem ou me traírem, ou me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida:
  •  depende apenas do meu poder em tornar o sonho vívido, nítido, real.
Isso exige estudo e paciência interior.

Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT