Cortesia de oslusiadas
Com a devida vénia à Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.
Prefácio
A Elaboração do Poema
«Dizer quando o Poeta pousou pela primeira vez a pena sobre o papel não parece muito difícil; mas a quando remonta o pensamento da epopeia? Para Storck o propósito de cantar os feitos heróicos do seu povo e da Pátria tomou, contudo, forma decisiva e amadureceu durante os seis meses de vida no oceano . É uma tese que podemos aceitar. E acrescenta o historiador alemão: «Se o gérmen da epopeia ainda não estendera até então raízes vivazes e tenazes, se na mente do Poeta ainda não se definira claramente o descobridor do caminho da Índia como figura principal, se a primeira e feliz navegação ao Oriente, a empresa do forte capitão, ainda não se revelara no seu esboço e na primeira traça como ponto culminante e foco de irradiação, no qual convergem as acções heróicas dos Portugueses, foi, sem dúvida alguma, durante a travessia que o génio criador do Poeta tomou o seu voo de águia».
Cortesia de poliscopio
Infelizmente, Storck terçou armas pela criação de dois poemas:
- um, histórico, elaborado ainda em Portugal e em Lisboa e de que o Poeta teve quase prontos os Cantos III e IV,
- e, depois, a epopeia marítima, em que vem entretecer-se a história do Reino.
Mas isto, a meu ver, é destruir a unidade dos Cantos III, IV e V, que constituem a narrativa dos feitos do Reino ao rei de Melinde e inserem-se na epopeia marítima. Tal narrativa tem muito pouco de histórica: foi sobretudo ideada pelo Poeta. Camões aproveitou muito bem o momento em que aparece pela primeira vez um rei amigo, o de Melinde, para iniciar a narrativa épica desde as origens até aquele momento em que chegou a Melinde. Não se vê como se podem separar estes três cantos e inserir os dois primeiros numa epopeia do Reino.
Prefiro ver a elaboração da epopeia segundo um plano preestabelecido, apenas modificado nesta ou naquela estância por acontecimento posterior à navegação e portanto tendo o seu lugar em qualquer profecia.
Não creio que o Poeta tenha levado longos anos a elaborar a sua epopeia intensamente, e há uma efeméride que mostra bem que em quatro ou cinco anos o Poeta avançara bastante. O trecho insere-se na descrição do orbe terrestre:
Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os cantos que, molhados,
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapados ...
(X.128.1-4)
Refere-se ao rio Mecom, que recolheu os náufragos do navio de Leonel de Sousa, que se afundou nos mares da China nos fins de 1558 (ou princípios de 1559). Entre eles contava-se Camões. O Poeta fala dos «seus cantos molhados», o que significa que se tratava já de um volume apreciável, cuja perda seria irreparável. O principal da obra estava feito. Mas o Poeta ainda a limou e é testemunha do facto o historiador Diogo do Couto, seu amigo, que em Moçambique o viu dedicado a essa tarefa (1568-1569).
Cortesia de palavrasquemetocam
De novo em Lisboa, em 1570, o Poeta deu-se pressa em arranjar forma de publicar o seu Poema e deve ter encontrado um interessado intercessor em D. Manuel de Portugal.
Em 23 de Setembro de 1571 a obra estava na impressão, conforme consta do alvará respectivo. No alvará que concede a Luís de Camões uma tença de 15$000 réis pela publicação de Os Lusíadas (datado de 28 de Julho de 1572) diz-se que a mercê será dada por três anos, a começar em doze de março deste ano presente de mil quinhentos setenta e dous em diante. Esta tença foi dada pelo conhecimento que o rei tem do «engenho e habilidade» do Poeta e pela «suficiência que mostrou no livro que fez das cousas da Índia». A data de 12 de Março de 1572 é uma data assinalável porque deve corresponder à do lançamento da obra.
Como é que Camões, errante por tantas partes do Mundo, dependente, como soldado, das ordens de marcha que lhe impunham e de que naturalmente descansava a bordo dos navios em que embarcava, como pôde ele arrumar no seu cérebro tantos conhecimentos e servir-se deles por onde quer que andou?
Estamos mais bem informados acerca da sua despedida de amor, em Coimbra (vão as serenas águas / do Mondego descendo ...) do que dos seus estudos naquela cidade.
Nem mesmo sabemos quando o Poeta saiu definitivamente de Coimbra. Mas se na 1.ª carta da Índia se queixa de, sem pecado que o obrigasse a três dias de Purgatório, ter passado (em Lisboa) três mil dias de más línguas, piores tenções, danadas vontades, nascidas de pura inveja de verem «su amada yedra de si arrancada, y en otro muro asida», podemos admitir que chegou a Lisboa por 1546.
Camões deve ter assistido a certos conflitos de jurisdição entre os cónegos regrantes de Santa Cruz e a Universidade, transferida de Lisboa para Coimbra. Impossível me é afirmar (porque a presença de Camões em Coimbra coincidiu com uma fase de transição) se Camões já foi ouvir o ensino «artístico» à Universidade ou se se manteve nos colégios de Santa Cruz, protegido por algum parente daquela congregação. É curioso que na narrativa ao rei de Melinde (III.97), falando das obras do rei D. Dinis, o Poeta escreveu:
Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do Mondego a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se,
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva,
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.
É Vasco da Gama quem informa, mas a verdade é que nesse momento (em 1497-1498) a Universidade estava em Lisboa. Vasco da Gama transmite ao rei de Melinde uma impressão de Camões, que aproveitara com o estudo de Coimbra e com a reforma do ensino ali operada.
Cortesia de purl
Os poetas lidos por Camões foram numerosos. Nem só Virgílio, nem só Homero, ainda que do primeiro teve um conhecimento profundo, que se revela no número de passos imitados, às vezes por forma bastante literal. Por exemplo:
Como isto disse, manda o consagrado
Filho de Maia à Terra, por que tenha
Um pacífico porto e sossegado,
(II.56.1-3)
Haec ait et Maia genitum demittit ab alto,
Ut terrae utque novae pateant Karthaginis arces
hospitio Teucris...
(En., I.297-299)
Quando a mãe de Eneias interroga ansiosamente o Pai dos deuses sobre o futuro do filho, Júpiter «oscula libavit natae» e diz-lhe: «Parce metu, Cytherea, manent immota tuorum / fata tibi ...» (I.256-258). Em Os Lusíadas também Júpiter, ainda mais aceso de amor:
As lágrimas lhe alimpa, e acendido
Na face a beija e abraça o colo puro
(II.42.5-6)
para lhe dizer
... não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos
(II.44.1-2)
No entanto, se Camões reconhece a suserania destes dois (V.94.7 e V.98.2), não desconheceu nem deixou de aproveitar outros: Ovídio, Horácio, Valério Flacco, Lucano, Claudiano e quantos mais ...
Conhece-os por dentro e invoca-os com toda a precisão». In Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT