Cortesia de lereverwordpress
«A reacção da historiografia científica aos mitos colectivos com maior impacte na construção da identidade nacional tem sido, em Portugal, um tanto curiosa. No passado medieval não havia dúvida nenhuma: o historiador era também um construtor de mitos, quer eles favorecessem a monarquia quer favorecessem as linhagens ou os conventos e santuários. A História era a elaboração de narrativas memoráveis e só o que contribuía para vencer a morte, para se assegurar a continuidade das colectividades, apesar do desaparecimento individual de cada um dos seus membros e dos seus chefes.
A persistência dos mitos
O triunfo da racionalidade moderna demorou séculos a alterar esta função da História, sobretudo quando se tratava da História nacional. Substitui-se por outros conceitos equivalentes o de protecção divina; a importância concedida à demonstração da sucessão e da legitimidade continuou a ser uma das preocupações maiores dos historiadores da nacionalidade. Ao propor o ideal da heroicidade todos cidadãos, pelo simples, pelo simples facto de a narrar como história do povo lusíada, a épica quinhentista veio em socorro dos historiadores da nação e marcou indelevelmente cronistas e memorialistas portugueses até aos nossos dias.
De facto, desde o século XVI que nenhum historiador europeu aceitaria a acusação de acreditar em mitos, por mais respeitáveis que eles fossem. Os eruditos do século XVIII criaram as primeiras regras do uso das ciências auxiliares para distinguirem os documentos «autênticos» dos «falsos» e para datarem correctamente os acontecimentos numa sequência temporal neutra, e os positivistas no século XIX, elaboraram as regras da crítica histórica para separarem as informações verídicas das erróneas, para reconstituírem os originais perdidos dos textos deturpados. Todos eles julgavam saber distinguir os mitos da realidade. Mas a dificuldade de distinguir a História da Epopeia continua até hoje. O mito insinua-se constantemente nas comemorações de factos gloriosos do passado e seduz poderosamente as comissões encarregadas de as promoverem.
Cortesia de araduca
Tomada, portanto, como história de um ente com vida própria, não podia deixar de se atribuir uma atenção privilegiada ao momento da «fundação» e à personalidade do «fundador». É no seu tratamento que melhor se revelam as concepções dos historiadores, aquelas que verdadeiramente os conduzem na interpretação dos documentos e do passado.
O tratamento da figura de Afonso Henriques produziu em Portugal os mais curiosos resultados desde que a crítica histórica penetrou entre nós. Tomar o «imaginário» não só verosímil mas também «real», pelos métodos seguros, científicos, escrupulosos, do positivismo e da erudição mais exigentes, eis o grande empenhamento, o persistente esforço de muitos dos nossos mais veneráveis historiadores, desde a época romântica até aos que ensinaram nas academias e universidades nos anos 40 a 60, e cujos propósitos foram seguidos por não poucos vulgarizadores de efectivo mérito científico até aos dias de hoje.
Uma das suas figuras predilectas foi, naturalmente, a do fundador da nacionalidade. Herculano, que sofreu uma terrível perseguição por ter ousado por em dúvida o milagre de Ourique, e que obviamente rejeitava uma intervenção directa do sobrenatural na vida política, nem por isso deixou de escrever, a propósito de Afonso Henriques:
- «Seguindo as fases deste longo reinado, e julgando parcialmente as acções do homem que a providência pôs à frente da nação para a guiar nos primeiros anos da sua existência, conhece-se que o pensamento de firmar a independência portuguesa subjugava no espírito do príncipe outras quaisquer considerações, ainda, talvez, com ofensa de algumas que deveriam ser respeitadas. É realmente àquela ideia que vão ligar-se muitos actos de Afonso Henriques, os quais, avaliados separadamente, dariam o direito a acusá-lo de pouca fé e de ambição desmedida […]. Mas se as ligarmos ao pensamento a que o rei de Portugal se votara e que, por assim nos exprimirmos, ele encarnara em si, quem não desculpará tais acções? […]. Visto, porém, o quadro à conveniente luz, as manchas que, aliás, assombrariam o altivo e nobre vulto do nosso primeiro rei quase desaparecem, e a simpatia que em todos os séculos a gente portuguesa mostrou pela memória do filho do conde Henrique torna-se respeitável, porque tem as raízes num afecto dos que mais raros são de encontrar nos povos, a gratidão para com aqueles a quem muito deveram. Este afecto nacional chegou a atribuir a Afonso Henriques a auréola dos santos e a pretender que Roma desse ao fero conquistador a coroa que pertence à resignação do mártir. Se uma crença de paz e de humildade não consente que Roma lhe conceda essa coroa, outra religião também veneranda, a da pátria, nos ensina que ao passarmos pelo pálido e carcomido portal da Igreja de Santa Cruz, vamos saudar as cinzas daquele homem, sem o qual não existiria hoje a nação portuguesa e, porventura, nem sequer o nome de Portugal».
Cortesia de xicoinforma
Trata-se de um passo extremamente revelador dos critérios que aqui estão em jogo e de facto o pensamento de Herculano na maneira como imaginava o nosso primeiro rei. Para ele, a função de fundador era um «facto histórico». Consequentemente, Afonso Henriques só podia ser um herói e a erudição devia aplicar-se a mostrar que o foi na realidade. Foi o que Herculano fez, com um empenho que compensava, talvez, inconscientemente, a negação do milagre de Ourique.
Entre os historiadores nacionalistas dos anos 40 bastará citar Luís Gonzaga de Azevedo, que toda a vida acumulou documentos e argumentos para rebater Herculano:
- «Afonso Henriques, além de guerreiro audacioso e tenaz, foi habilíssimo político, e bem o mostrou, reunindo em torno da ideia da independência nacional, que ele representava, todas as classes sociais dos seus estados diminutos, clero, nobreza e povo. De tal modo se houve com elas que todos se prestavam, aparentemente, e ao menos em geral, sem queixas e contente, aos sacrifícios incessantes da fazenda e sangue que deles exigia, para que esse ideal, que ele encarnara, passasse da região dos sonhos e da quimeras para a das realidades sociais subsistentes. A obra realizada por Afonso Henriques, com tão poucos elementos, tendo contra si adversários e inimigos tão poderosos, pressupõe tal constância e agilidade, tal soma de trabalho material e intelectual despendido sob mil formas, arte tão requintada de cativar vontades e de alentar e reforçar corações, que só um homem de recursos mentais superiores a pudera levar a cabo».
Palavras como estas, porém não desapareceram com o fim do regime nacionalista e a implantação da democracia. O general Luís da Câmara Pina, presidente da Academia das Ciências, dizia em 1977, numa comunicação à Academia Portuguesa de História, acerca da personalidade militar de Afonso Henriques, depois de um longo e minucioso estudo, aliás com observações interessantes acerca dos seus processos tácticos:
- «Só um grande chefe militar como D. Afonso Henriques conseguiria criar no Portugal do século XII uma situação de coesão que pode resumir-se em três conceitos: unidade de sentimento, unidade intelectual, unidade de doutrina […]. D. Afonso Henriques também revelou, em corpo inteiro, e com o sinal dos seus exércitos, a sua bravura e a força material, mas sempre as dominou pela força do seu espírito, sempre as guiou pela vontade e pela inteligência, não como um deus, mas, de facto, e em termos humanos, como o Grande Senhor da Guerra (28)».
In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT