quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «O rei fitou-o, assombrado. - Não os tenho. Nunca tive dez ducados. Este meio que procuro tive que o pedir ao meu moço de câmara. Depois, vão contá-lo nas suas memórias»

jdact

«Naquela manhã de domingo, tantos de Outubro, uma manhã cálida e soalheira, Secundino Mirambel redigiu o seu relatório semanal com os habituais escrúpulos e a bela prosa de quem tinha bebido nos melhores clássicos latinos e aprendido o castelhano nos arredores de Écija; se ceceava um pouco, o ceceio (o ceceio, em Espanha, é próprio das regiões do Sul do país, Écija é uma cidade andaluza da actual província de Sevilha) não se transmitia ao papel. Saiu de casa pela fresca, entregou  o relatório a um fâmulo da Santa Inquisição (maldita) e regressou a casa depois de dizer missa, de tomar um chocolate e beber um copo de água fresca, como lhe pedia o corpo; deitou-se sem se despir, pois, aos domingos e à cautela, apenas costumava fazer uma curta soneca. O fâmulo da Santa Inquisição (maldita) passou o escrito a Sua Excelência, de pé desde a madrugada, com a missa já dita e graves problemas no coração e na cabeça. Estava no seu gabinete, anexo ao salão do Conselho. Abriu a carta de Secundino, deu-lhe uma olhadela, mas, de repente, alguma coisa lhe deve ter chamado a atenção, Porque se pôs a ler atentamente, com o cenho franzido e exclamações intercaladas, tais como: - Deus nos valha! Onde isto chegou! Anda o demónio à solta! Acabou de ler, fechou a carta e ordenou que fossem imediatamente ao convento de São Francisco e que se apresentasse frei Eugénio de Rivadesella, sem mais delongas.
O conde da Peña Andrada dava os últimos retoques ao seu penteado diante de um espelhinho que lhe trouxera Lucrécia. Ela observava-o por trás, observava-os e ele e à sua imagem no espelho. Quando o conde largou o pente, ela deu-lhe um beijo no cabelo e disse-lhe: ‘Estás lindíssimo’. E foi-lhe buscar a roupeta azul-celeste, para que acabasse de se vestir. - Já terá acordado, a tua ama? - Costuma ser mandriona, e mais aos domingos. - Pois, ao Rei, haverá que acordá-lo. Vão sendo horas. - Eu não me atrevo. Acorde-o o senhor.
Aproximaram-se da porta do quarto de Marfisa, e Lucrécia abriu-a cautelosamente. Um raio de Sol atravessava a sala, iluminava os grandes mosaicos, brancos e vermelhos, do pavimento, e chegava até à beira da cama. Na sua penumbra, dormiam duas figuras: a do Rei, à beirinha; a de Marfisa, ao fundo. O conde aproximou-se em bicos de pés e tocou no ombro nu do monarca.
 - Senhor, já são horas. Sua Majestade abriu os olhos preguiçosamente. - O que é que há? - É, preciso levantar-se. É tarde. Começaram e dar as oito numa torre: as badaladas tremiam no ar quente, prolongavam-se, misturavam-se umas com as outras até parecerem uma só.
- Não é muito cedo, conde? - Temos que atravessar a cidade. -A pé? - Espero que a minha carruagem nos aguarde. O rei levantou-se: nu, deixava ver a sua magreza, e esta adivinhar os seus ossos delicados. Afastou o cobertor de papa e ficou em pelota. - Dá-me a minha roupa. O conde obedeceu, em silêncio. O rei começou a vestir-se.
- Gostaria de me refrescar um pouco. - Não é impossível, senhor. O corpo de Marfisa tinha ficado meio a descoberto: deixava ver a cabeleira, as costas, a fina cintura, o arranque das nádegas. O rei fitou-a. Com surpresa, com estupefacção.
- Viste coisa mais bela? - Há muitas coisas belas no mundo. - Mais do que o corpo de uma mulher? - Se é o de Marfisa, dificilmente. - Até ontem à noite, nunce tinha visto uma mulher nua.
 - E então? - O paraíso tem que ser uma coisa semelhante. O conde torceu o nariz. - Não creio que os senhores inquisidores aprovassem essa ideia. - Que saberão os senhores inquisidores de mulheres nuas? - Segundo eles, tudo.
O rei já se encontrava meio vestido. O conde pediu a Lucrécia uma bacia com água fresca. O rei começou a remexer na escarcela.
 - Que. procura Vossa Majestade? - O meio ducado para Marfisa. - Meio ducado, só? - É o que indica o protocolo, segundo ouvi dizer. O conde sorriu.
 - Senhor, o protocolo está antiquado, e Marfisa é a p… mais cara da cidade. Pelo menos dez ducados.
O rei fitou-o, assombrado. - Não os tenho. Nunca tive dez ducados. Este meio que procuro tive que o pedir ao meu moço de câmara. Depois, vão contá-lo nas suas memórias. O conde meteu a mão na sua escarcela e tirou uma bolsa de veludo.
 - Aqui estão os dez ducados. Trazia-os para Lucrécia.
Lucrécia entrava com a bacia e ouviu a frase do conde. - Vossa Senhoria a mim não me tem que dar nada. Considero-me paga.
O rei fitou o conde, e o conde tornou a sorrir. - A mim, disse o rei, Marfisa não me disse isso. - É, que a minha ama, Senhor, fá-lo por ofício, e… eu, por gosto, e o senhor conde deixou-me satisfeita.
 - Podes beijá-la na minha presença, conde. O rei salpicou a cara e enxugou-a com a toalha que Lucrécia lhe oferecia. Enfiou o chapéu, mas o conde manteve-se descoberto.
 - Cobri-vos, conde - disse o rei. O conde obedeceu. - Obrigado, senhor. - Contá-lo-emos no palácio, diante do Valido (espécie de primeiro-ministro característico dos reinados dos monarcas espanhóis durante o século XVII), para que se roa de inveja. Agora vamo-nos embora.
Lucrécia acompanhou-os à porta. Deu um beijo ao conde e chamou-lhe bonitão ao ouvido. A carruagem esperava: pouco sumptuosa, mas sólida e elegante. Lucrécia agitou a mão. A carruagem corria pela rua, cheia de altos e baixos, como pela superfície de um espelho. O rei olhava em frente, como se o envolvesse o infinito. Tinha cara de pasmado.
Que fitais com tanta atenção, Senhor? O corpo de Marfisa. Não posso ver outra coisa». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da E. Caminho/JDACT