«Naquela manhã de domingo, tantos de Outubro, uma manhã cálida e
soalheira, Secundino Mirambel redigiu o seu relatório semanal com os habituais
escrúpulos e a bela prosa de quem tinha bebido nos melhores clássicos latinos e
aprendido o castelhano nos arredores de Écija; se ceceava um pouco, o ceceio (o ceceio, em Espanha, é próprio das regiões
do Sul do país, Écija é uma cidade andaluza da actual província de Sevilha)
não se transmitia ao papel. Saiu de casa pela fresca, entregou o relatório a um fâmulo da Santa Inquisição (maldita)
e regressou a casa depois de dizer missa, de tomar um chocolate e beber um copo
de água fresca, como lhe pedia o corpo; deitou-se sem se despir, pois, aos
domingos e à cautela, apenas costumava fazer uma curta soneca. O fâmulo da Santa
Inquisição (maldita) passou o escrito a Sua Excelência, de pé desde a
madrugada, com a missa já dita e graves problemas no coração e na cabeça.
Estava no seu gabinete, anexo ao salão do Conselho. Abriu a carta de Secundino,
deu-lhe uma olhadela, mas, de repente, alguma coisa lhe deve ter chamado a
atenção, Porque se pôs a ler atentamente, com o cenho franzido e exclamações
intercaladas, tais como: - Deus nos valha! Onde isto chegou! Anda o demónio à
solta! Acabou de ler, fechou a carta e ordenou que fossem imediatamente ao
convento de São Francisco e que se apresentasse frei Eugénio de Rivadesella,
sem mais delongas.
O conde da Peña Andrada dava os últimos retoques ao seu penteado diante
de um espelhinho que lhe trouxera Lucrécia. Ela observava-o por trás,
observava-os e ele e à sua imagem no espelho. Quando o conde largou o pente,
ela deu-lhe um beijo no cabelo e disse-lhe: ‘Estás lindíssimo’. E foi-lhe buscar a roupeta azul-celeste, para
que acabasse de se vestir. - Já terá acordado, a tua ama? - Costuma ser
mandriona, e mais aos domingos. - Pois, ao Rei, haverá que acordá-lo. Vão sendo
horas. - Eu não me atrevo. Acorde-o o senhor.
Aproximaram-se da porta do quarto de Marfisa, e Lucrécia abriu-a
cautelosamente. Um raio de Sol atravessava a sala, iluminava os grandes
mosaicos, brancos e vermelhos, do pavimento, e chegava até à beira da cama. Na
sua penumbra, dormiam duas figuras: a do Rei, à beirinha; a de Marfisa, ao
fundo. O conde aproximou-se em bicos de pés e tocou no ombro nu do monarca.
- Senhor, já são horas. Sua
Majestade abriu os olhos preguiçosamente. - O que é que há? - É, preciso
levantar-se. É tarde. Começaram e dar as oito numa torre: as badaladas tremiam
no ar quente, prolongavam-se, misturavam-se umas com as outras até parecerem
uma só.
- Não é muito cedo, conde? - Temos que atravessar a cidade. -A pé? -
Espero que a minha carruagem nos aguarde. O rei levantou-se: nu, deixava ver a
sua magreza, e esta adivinhar os seus ossos delicados. Afastou o cobertor de
papa e ficou em pelota. - Dá-me a minha roupa. O conde obedeceu, em silêncio. O
rei começou a vestir-se.
- Gostaria de me refrescar um pouco. - Não é impossível, senhor. O
corpo de Marfisa tinha ficado meio a descoberto: deixava ver a cabeleira, as
costas, a fina cintura, o arranque das nádegas. O rei fitou-a. Com surpresa,
com estupefacção.
- Viste coisa mais bela? - Há muitas coisas belas no mundo. - Mais do
que o corpo de uma mulher? - Se é o de Marfisa, dificilmente. - Até ontem à
noite, nunce tinha visto uma mulher nua.
- E então? - O paraíso tem que
ser uma coisa semelhante. O conde torceu o nariz. - Não creio que os senhores
inquisidores aprovassem essa ideia. - Que saberão os senhores inquisidores de
mulheres nuas? - Segundo eles, tudo.
O rei já se encontrava meio vestido. O conde pediu a Lucrécia uma bacia
com água fresca. O rei começou a remexer na escarcela.
- Que. procura Vossa Majestade?
- O meio ducado para Marfisa. - Meio ducado, só? - É o que indica o protocolo,
segundo ouvi dizer. O conde sorriu.
- Senhor, o protocolo está
antiquado, e Marfisa é a p… mais cara da cidade. Pelo menos dez ducados.
O rei fitou-o, assombrado. - Não os tenho. Nunca tive dez ducados. Este
meio que procuro tive que o pedir ao meu moço de câmara. Depois, vão contá-lo
nas suas memórias. O conde meteu a mão na sua escarcela e tirou uma bolsa de
veludo.
- Aqui estão os dez ducados.
Trazia-os para Lucrécia.
Lucrécia entrava com a bacia e ouviu a frase do conde. - Vossa Senhoria
a mim não me tem que dar nada. Considero-me paga.
O rei fitou o conde, e o conde tornou a sorrir. - A mim, disse o rei,
Marfisa não me disse isso. - É, que a minha ama, Senhor, fá-lo por ofício, e… eu,
por gosto, e o senhor conde deixou-me satisfeita.
- Podes beijá-la na minha presença,
conde. O rei salpicou a cara e enxugou-a com a toalha que Lucrécia lhe
oferecia. Enfiou o chapéu, mas o conde manteve-se descoberto.
- Cobri-vos, conde - disse o rei.
O conde obedeceu. - Obrigado, senhor. - Contá-lo-emos no palácio, diante do
Valido (espécie de primeiro-ministro característico
dos reinados dos monarcas espanhóis durante o século XVII), para que se roa
de inveja. Agora vamo-nos embora.
Lucrécia acompanhou-os à porta. Deu um beijo ao conde e chamou-lhe bonitão
ao ouvido. A carruagem esperava: pouco sumptuosa, mas sólida e elegante. Lucrécia
agitou a mão. A carruagem corria pela rua, cheia de altos e baixos, como pela
superfície de um espelho. O rei olhava em frente, como se o envolvesse o
infinito. Tinha cara de pasmado.
Que fitais com tanta atenção, Senhor? O corpo de Marfisa. Não posso ver
outra coisa». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da E. Caminho/JDACT