Esfinge ou a poesia
«Assim o seu passado os alcançou, mineralizando-os como à mulher
bíblica. Os seus poemas, a esfinge criada, vinham novamente ter com eles. Não
podiam renovar-se. Quem afrontaria o monstro, o deus da inércia, do hábito, da morte?
Uma poeta novo, com armas novas, capaz de recordar ao deus as suas origens.
Quando já ninguém sabia dizer quem era a esfinge, que estranho ser era esse da
poesia, o jovem Édipo passou por acaso nos arredores de Tebas. Era apenas um
adolescente que não olhava para o passado, porque todo o passado caminhava nos
seus passos para dias magníficos. Ignorava as virtudes do silêncio e as suas
palavras tinham um jeito bárbaro, mas o pobre deus humano duvidou dos seus
poderes quando encontrou os seus olhos inflexíveis. Édipo só sabia uma única coisa:
é
que todos os enigmas são enigmas do homem. Logo o Homem devia ser a resposta a
todos os enigmas. Mesmo aos dos deuses que se lhes escapam da mão para
o perder. Acertou. O
homem era a resposta.
O deus precipitou-se no mar quando um adolescente disse a palavra
inimiga de todos os deuses. Um futuro puramente humano ia edificar-se sobre um
mistério sepulto. O terror e a morte que
viessem seriam dominados por uma só palavra.
Contudo, o resto da história trouxe um prémio diferente ao assassino
dos deuses. A engrenagem mais bem montada da fatalidade caiu sobre os seus
ombros heróicos e aniquilou-o entre os seus anéis. Casar com a mãe, assassinar
o pai, arrancar os olhos, é esse o prémio de assumir um destino puramente
humano?
Curioso é nós termos a tentação de aceitar que tudo devia ser assim.
E de repetir por nossa conta o destino de Édipo. Contudo, se aceitamos que a
esfinge é o homem e a resposta ao seu enigma uma resposta humana, como não
tentar descobrir a fonte donde jorrou novamente a fatalidade vencida? Uma vez
mais ela nasceu dum esquecimento. De uma tentação renovada de olhar para
trás à procura dum crime imaginário, que Édipo devia ter assumido, ou antes,
rejeitado, com uma coragem de homem.
Édipo pensou que uma fórmula era uma solução. E ela era só uma dificuldade.
Que
bastava dizer uma só vez Homem e o terror e os monstros se sumiriam para sempre.
Foi o primeiro humanista sincero mas abstracto. A verdade é que os monstros voltam
sempre. O combate com o anjo é de todas as horas. Servirmo-nos do escudo do
homem é assumir a sua ambiguidade. E saber que nada existe à nossa frente senão
o que consentimos criar com as nossas mãos. A cada hora o mundo é o que fazemos
dele. A história o que fizermos dela. E os valores. E os encontros.
Impossível aceitar como Édipo que tudo
está feito só porque descobrimos a "fórmula" (de VG) que permite que tudo se faça».
In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003,
ISBN-972-662-907-1.
Cortesia de Gradiva/JDACT