«Esquecem que o grande escritor é aquele que o público salvou do
esquecimento; que se um escritor chega a ser grande não é só porque o quis, mas
porque um público o aceitou. Enquanto não se fizer, paralelamente à história do
escritor, uma história do público, não teremos uma verdadeira história da literatura.
A história da literatura é a história daquilo que o público lê ou leu. Se
conhecêssemos a história do público, deixaríamos de nos preocupar com muitos
pseudoproblemas que hoje roubam aos historiadores literários um tempo e esforço
mal empregados. Explicaríamos talvez a estranha configuração da história do teatro
português. Resigno-me a propor à vossa consideração uma simples hipótese. Notai
que a primeira grande época do teatro europeu moderno corresponde a certas
modificações da estrutura da sociedade europeia. Racine, Corneille, Rotrou, Molière,
surgem, como por encanto, quase na mesma época, a época de Richelieu e Luís XIV.
Não há aqui uma mera coincidência; como não é uma mera coincidência o
florescimento do teatro inglês na época de Isabel ou o do teatro espanhol na
época de Filipe II. Em todos estes países correspondem ao florescimento do
teatro a centralização monárquica, o desenvolvimento da burguesia, a
transformação da nobreza, de guerreira que era, em cortesã. Que relação há entre estas duas séries de factos?
Pela afluência dos fidalgos provincianos cujos castelos são arrasados e
dos burgueses que ascendem a funções importantes na burocracia e adquirem
títulos de nobreza, a corte converte-se num considerável centro populacional
formado por indivíduos selectos e capazes de constituírem o público próprio
para uma produção teatral de alto nível. Será preciso que as pequenas cortes
senhoriais sejam sacrificadas à grande corte de Paris e que, à volta do grande
rei, se aloje uma multidão de áulicos e burocratas para que surja o esplendor
do teatro francês do século XVII; e será preciso que a corte seja varrida pela
Revolução, a aristocracia aniquilada ou desterrada, que o público se torne uma vasta
massa dispersa, para que o nível da produção teatral, desça com o advento do
romantismo. Isto, que é verdadeiro para a literatura francesa, inglesa ou
espanhola, por que o não será também para a literatura portuguesa?
A corte de Manuel I não é ainda precisamente a corte de Luís XIV, mas
vai a caminho de o ser. Os fidalgos que pretendem um lugar no grande banquete
que é a pilhagem do Oriente dependem inteiramente da benignidade do rei e
concentram-se na corte à espera de vez; a burguesia apodera-se da magistratura,
intervém na máquina burocrática, administra a Casa da Índia, fornece a classe
dos letrados. A corte é um forte centro de atracção: Todos del-Rei! Todos del-Rei!,
grita Gil Vicente, que era, aliás,
um dos de el-rei. Assim se forma um público de fidalgos ociosos e burgueses
letrados ao qual se dirigem os autos vicentinos.
Mas em Portugal, ao contrário do que sucede em França, este movimento é
abruptamente interrompido. Todo um processo que culmina com a perda da
independência e, portanto, a queda de Lisboa como capital régia, dizima o
público cortesão. E o teatro, sem corte, acolhe-se nos pátios, vive de um público
de acaso e inculto. A arrastada continuação desta história, assumptuosas
mágicas e alegorias com que os jesuítas procuraram fazer esquecer o teatro que
eles tinham ajudado a destruir, a voga da ópera italiana na corte dissoluta e
beata de João V, o começo do Renascimento, no século XVIII, com António José Silva,
que a Inquisição (maldita) queimou, com Manuel de Figueiredo, Garção e Quita,
mostrar-nos-iam a lenta ascensão de um público disperso, a criação de uma nova
classe de espectadores, a tentativa, já fora de tempo, para reconstituir uma corte com elementos de uma fidalguia decaída e de
um clero inculto, a influência de uma educação cujo principal objectivo era
destruir a personalidade». In António José Saraiva, Para a História da
Cultura em Portugal, A Evolução do Teatro de Garrett, Gradiva Publicações,
Lisboa, 1996, ISBN 972-662-460-6.
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